Quando escrevi a
crônica sobre os Mallet-Cyrino, vieram-me à memória as imagens
dos homens e das mulheres que brindavam a sociedade da antiga
Itápolis com os feitos de suas cabeças privilegiadas, com o
brilho de suas realizações. O Wilson Marin, que fez seus estudos
no “Valentim Gentil”, morando na casa da Dona Dalva e do Dr.
Edson Caivano, seus parentes, era amigo do Geraldo, o mais moço
dos Mallet, por isto frequentava a casa verde da Rua Ruy
Barbosa. E quando o Wilson passava por lá para apanhar o
Geraldo, costumava nos dizer: “Passei pelo Centro Cultural de
Itápolis para chamar o Geraldo”. Era uma forma carinhosa de
referir-se à família de seu colega, mas era também uma expressão
carregada de propriedade, um título bem achado e justo.
Pois é, algumas
casas da minha mais tenra Itápolis exalavam sabedoria, eram
ícones culturais, não por sua arquitetura ou aparência, mas
pelos seres humanos que as habitavam. As casas antigas da nossa
cidade não eram admiradas pelo seu tamanho, suntuosidade, número
de garagens, existência de piscinas e outros luxos, embora
fossem bem mais expostas que as de hoje em dia, cuja maioria é
cercada de muros altos. As casas de outrora eram referidas,
lembradas, por vezes até exaltadas pelo conceito de que gozavam
seus moradores.
Alguns exemplos:
na esquina da Praça Pedro Alves de Oliveira com a Av. Florêncio
Terra, no vértice alinhado com a praça, havia uma casa alta,
tipo chalé, com escadas que levavam à varanda. Era bonita,
estilosa, até mesmo imponente para a arquitetura da época. Mas
ninguém a destacava por isto e sim porque era a casa do Dr.
Marinho, do advogado Dr. Marinho Rosa, um baiano extremamente
simpático e bem humorado, solteirão convicto, que ali morou
muitos anos, junto de suas duas irmãs, Dona Nininha e Dona
Nonoca, também avessas ao matrimônio. O Dr. Marinho, que também
lecionou no “Valentim Gentil”, mudou-se dali para uma casa
situada na linha da calçada, ali na Av. Francisco Porto,
defronte ao posto de combustíveis MG. A casa da praça deixou de
ser referência, a casa da Francisco Porto ganhou status de ponto
de encontro de intelectuais, pois o Dr. Marinho era muito
receptivo, gostava de sentir-se rodeado por estudantes, de
pessoas interessadas em cultura e saber. O Dr. Marinho nos
deixou, suas irmãs também, e aquelas casas, que estão até hoje
nos mesmos lugares, perderam aquela importância. Assim era a
casa onde morava o sociólogo autodidata, Júlio Sudário, o
Julinho da farmácia. Seu conceito de homem lido, livre pensador,
conhecedor de várias disciplinas servia de moldura para sua
farmácia, que tinha um banco de madeira que servia para reunir,
em torno do Julinho, estudantes, homens letrados, políticos, que
iam ali sorver da fonte de sabedoria que era aquele homem. A
casa está lá, na Av. 7 de Setembro, no quarteirão entre a
Valentim Gentil e a Francisco Porto. A farmácia do Julinho deu
lugar a outra farmácia, mas ninguém mais pára diante delas
dizendo ao seu acompanhante “Aqui é a casa do Júlio Sudário”, ou
“Aquele moço de óculos lá no balcão é o grande Julinho
Sudário!”. Na verdade, ninguém mais tem motivo para apontar para
aqueles dois prédios.
Assim eram
conhecidas as casas do Maestro Raphael Mercaldi, do poeta e
letrista Professor José Toledo de Mendonça, do Chico Gentil,
eterno e respeitável tesoureiro da Prefeitura, do Professor
Rômulo Pero, homem dotado de brilhante inteligência, por longo
tempo Chefe dos Escoteiros; assim eram conhecidas as casas das
pessoas que se destacavam de alguma maneira, fosse pelo saber,
fosse por sua competência profissional. As casas dessas pessoas
serviam de ponto de referência para se referir às ruas, para se
explicar o endereço de alguém. Quando alguém era consultado na
rua: “Onde é a Coletoria Federal?”, a resposta era quase sempre:
“É na praça do Jardim, pra cima da casa do Doutor Marinho”.
-“Onde fica a Associação Comercial?" - “Fica na rua do Odilon
Negrão, na mesma calçada do Sr. Luís Cyrino”.
A grande maioria
dos itapolitanos desconhecia ou não levava em conta os nomes dos
logradouros públicos; talvez seja por isto que seus
administradores, assim como os de quase todas as cidades
brasileiras negligenciam tanto na colocação de placas em nossas
ruas. Não é de hoje que é assim. Experimente procurar uma rua
numa cidade que você mal conhece. Você vai andar ou rodar muito
e terá que perguntar várias vezes aos transeuntes, pois as
placas indicativas não aparecem. Isto vem do tempo em que não
precisava saber-lhes os nomes. Os antigos costumavam dizer: “Vai
por rumo, vai perguntando, porque aqui não tem placa não!”.
Também eram
pontos de referência as casas das autoridades. A casa do
Prefeito, a casa do Delegado de Polícia, a casa do Promotor
Público, a casa do Juiz. Aliás, esta, a casa do Juiz, era fixa,
era destinada a ele pelo poder público. Em Itápolis ela ficava
na esquina da Av. Eduardo Amaral Lyra com a Rua Ruy Barbosa
(atual rua Odilon Negrão). Mudava-se um Juiz, chegava um novo,
ia morar na mesma casa. Mas ela se destacava pelo cargo, não
pela figura de seu ocupante. Naquele tempo os juízes não ficavam
conhecidos da população da cidade. De hábito eles se fechavam,
se ocultavam, não faziam amizade nem com seus vizinhos mais
próximos. Não frequentavam festas, festejos populares,
casamentos, não visitavam nem mesmo os advogados, pessoas que
atuavam na sua área, a Justiça. Viviam confinados, circunscritos
entre o Fórum e sua casa. Tudo em nome da isenção, do não
envolvimento. O Juiz era, por tradição, uma figura equidistante
das pessoas e dos acontecimentos sociais. Tudo para que, na hora
de julgar, estivesse livre de compromissos com quem quer que
fosse.
Assim eram as
casas e as pessoas que, naqueles anos já distantes, formavam o
retrato de nossa querida terra. |