A chuva chegou,
demorou, demorou, demorou, mas chegou. Como é gostoso ouvir o
tilintar das gotas batendo na vidraça, como foi bom ter que correr
fechar vitrôs, venezianas, recolher os panos do varal, porque a
chuva chegou forte, com cara de quem veio de mudança. As vidraças
suavam com o choque do frescor da chuva com o vidro quente do calor
tórrido que judiava de todos, o som retumbante dos trovões ainda
distantes soavam como uma sinfonia, como a “Pastoral” de Beethoven.
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Área de Lazer
"Ciniro Massari" encravada no que restou de mata da
fazenda do Ciniro |
Eu fiquei recostado
à poltrona fruindo aquele momento de reencontro, aquela promessa de
frescor, aquela redescoberta da chuva que parecia ter abdicado de
nossas plagas. E, como sou teimoso em avançar nos anos, condição que
causa o saudosismo, não demorou nada, nada, eu me transportei à
minha terra tão chuvosa, naqueles tempos de infância. E tive saudade
do cheiro de terra que hoje não brota mais da chuva.
Era um cheirinho
cheio de ternura, que nos pegava em momentos de recolhimento e de
pausa. Senti saudade de poder abrir de leve a janela da rua, olhar
para a direita e ver a mata virgem do Ciniro Massari envolta naquele
véu branquinho da chuva que a banhava. Saudade dos janeiros sempre
molhados que mudavam nossa paisagem, transformando a terra pisada da
rua em barro escorregadio que obrigava carros de boi, troles,
semi-troles, charretes, carroças, caminhões, fordinhos, tudo que
tinha rodas, rodar bem
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Reserva florestal
na estrada do Monjolinho, uma das poucas que restaram no
município |
devagarinho. A chuva
trazia o espetáculo que se assistia das janelas, dos parapeitos das
varandas. E o que se via eram escorregões, derrapadas, patinadas,
gente que esqueceu o guarda-chuva correndo molhadas “como um pinto”
(aqui é pinto, filho de galinha).
A chuva ia
amainando, virava garoa, dava aquela trégua que sabíamos não ia
demorar muito, a gente aproveitava e saía à rua, pra ver a enxurrada
que descia lá da Estrada de Ferro, hoje Rua José Rossi, pelas
sarjetas da Francisco Porto. Era um espetáculo à parte! A sarjeta da
esquerda de quem olhava lá de baixo, era a que levava a enxurrada
mais volumosa e mais impressionante pela forte correnteza, pela
violência com que chocava com as pedras fogo e com o bueiro enorme
que a esperava na esquina da Rua José Bonifácio, hoje Trevisan, bem
do lado do Bazar 11 (hoje Eletrolar).
E foi numa destas
tardes de enxurrada que vi, por vez primeira em minha vida ainda
escassa, o espectro da tragédia! Olhávamos atentos o movimento da
correnteza, naquela tarde que pareceu uma tromba d’água, quando, de
repente, um volume feito um boneco de Judas em Sábado da Aleluia,
descia celeremente no meio da enxurrada! Homens dotados de
humanidade e coragem tentavam segurá-lo, em vão, ficaram todos com
trapos que se soltaram da roupa daquele infeliz que de repente
desapareceu para dentro do bueiro! Vi homens correndo feito doidos,
saltando pra baixo da ponte que passava sobre o Rio da Carlota, na
tentativa vã de resgatar aquele infeliz filho de Deus. Devia ele ser
muito pobre, pois seus panos se desmanchavam ao toque dos que
tentavam salvá-lo.
Naquele tempo ainda
não tínhamos a rádio, os jornais eram pobres em noticiário, as boas
e más novas chegavam no “de boca em boca”. Mas o silêncio foi total,
este foi o primeiro indigente absoluto que conheci na vida e cujo
passamento, em duplo sentido, nunca mais saiu de minha retina e do
pano de fundo do meu conceito de vida. Enquanto escrevo, a cena está
se repetindo na tela de minha memória. Um dia, na universidade, um
verso de Vinícius me devolveu esta cena, “A morte é simples”
, concluiu o poeta.
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