Na minha mais tenra Itápolis, nos idos das décadas de 30 e
40, a Quaresma era um evento litúrgico que marcava toda a vida
da nossa cidade. Depois dos dias alegres e irreverentes do
Carnaval, recebíamos a cruz de cinza na testa e entrávamos no
clima das contenções. Sublimávamos todas as manifestações de
euforia, de exaltação, de arroubos para nos tornar sóbrios e
recatados, para nos preparar para os dias do martírio de Jesus.
Em todas as casas das famílias católicas, maioria esmagadora
na época, a sobriedade estava em tudo, até nas toalhas que
cobriam as mesas, nas colchas que protegiam as camas... nada de
cores berrantes, predominava o neutro, o discreto. E da mesa
desaparecia a carne de vaca, de porco, de carneiro, até mesmo a
de frango em algumas casas. O peixe e o ovo eram os únicos
alimentos de origem animal que se ofereciam às refeições. E
grande parte das famílias praticava o sacrifício do jejum às
sextas feiras, algumas nas quartas feiras também.
A igreja matriz e a capela do Hospital de Misericórdia, os
dois únicos templos católicos daqueles tempos, vestiam-se de
roxo, esvaziavam seus vasos das flores coloridas e até o sol
que atravessava os vitrais coloridos da nave parecia
assombrear-se nos dias cinzentos das águas de março. Os
paramentos dos frades franciscanos e dos coroinhas eram marcadas
pelas variações do roxo e do lilás. Os sonoros e melodiosos
sinos das imponentes torres silenciavam: estávamos na Quaresma,
que ninguém se esquecesse!
O clima de contenções era tão abrangente, que até nós,
crianças, parece que nos comportávamos melhor. Os arteiros
recolhiam sua volúpia de “aprontar” porque era Quaresma. Eu era
um deles, claro. E me lembro, como se fosse hoje, de ouvir nossa
vizinha, a Isabel Vessoni, minha professora no 3º ano do grupo
escolar, comentando com minha mãe: “Bebé, é incrível como os
alunos ficam ajuizados na Quaresma, o Orestinho anda um anjo,
não dá o mínimo trabalho!” e minha mãe retrucando: “Deixa chegar
o sábado da Aleluia!”
Enfim, a Quaresma nos levava a todos, crianças, jovens,
adultos e velhos, pobres e ricos, à reflexão e ao recolhimento.
A presença de um Jesus em perigo, de um Jesus aflito, era
sensível. Tudo respirava respeito a isto. O Serviço de
Alto-falantes, a Rádio ZYQ 4, que veio mais tarde, o gramofone
da loja do Jurema, os rádios e vitrolas das casas, todos os sons
ficavam moderados, quase silenciavam de vez. Em alguns lares
eram mesmo desligados das tomadas.
Os bailes no clube, as brincadeiras dançantes, as matinês, os
arrasta-pés no Malaspina, no Corguinho, nem por brincadeira,
tudo parava. Daí a importância e a expectativa do Baile da
Aleluia! Os noivos tinham que esperar passar a Quaresma para
realizar seu sonho de casar-se.
Chegava a Semana Santa, com suas missas históricas, com a
Procissão do Encontro, com a vigília na matriz, com a cerimônia
do Lava-pés, com a encenação da crucificação de Cristo, com o
baixar do corpo para a Procissão do Enterro na noite sombria e
triste da Sexta-feira Santa, quando as ruas se iluminavam com
velas, as casas se santificavam com os altares nas janelas, os
rostos se umedeciam de lágrimas à passagem do Jesus ainda morto.
A Semana Santa, mais que o Natal, nos colocava
diante da existência de Deus, do sofrimento da Mãe Santíssima,
da entrega de Jesus para nos salvar! Todos nós nos sentíamos
órfãos naqueles dias tristes e nos sentíamos bem mais próximos
de Deus, a quem pedíamos pelo Seu filho dileto.
Era Quaresma, tempo de recolhimento, tempo de se
comportar como filhos de Deus, como participantes de uma
comunidade solidária e ungida pelo sacrossanto espírito do
pesar, da condolência, da compaixão. Eram outros tempos mesmo!
Éramos outro tipo de gente! Éramos verdadeiras criaturas de
Cristo!
Quem sabe numa Páscoa destas, que vêm por aí,
Ele não ressuscite em nós e nos reconduza às veredas da
sobriedade, da simplicidade, da humildade, do mútuo respeito
entre os “próximos”, quem sabe! Quem sabe Ele não volte pra
expulsar a violência, a ganância elevada aos extremos, a
desonestidade, a falsidade, a mentira, a desagregação e perda
dos valores humanos tão banais nestes tempos de hipócritas e
egoístas! Quem sabe estejamos próximos de um novo ato de
salvação. Enquanto esperamos, Deus nos permita a todos uma
Páscoa feliz, alegre pela Ressurreição, recriando em todos nós o
sentimento da esperança em dias melhores para esta humanidade
enferma de cego materialismo. Boa Páscoa a todos nós!
“Sempre é possível contar com Ele”
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