Hoje vou dar uma volta pelos
arredores da minha velha Itápolis, do jeito que as coisas eram nos anos 40 e 50.
No meu período de infância, quando eu perambulava pelas ruas do meu pedaço,
época em que ninguém se atrevia a falar em bairros da cidade, os
limites dela eram alcançados pelos nossos olhos.
Olhando da minha Francisco Porto
para o arrabalde, como era chamada a parte periférica da cidade, dava pra
ver a última casa da rua. Era a casa do Sr. Antônio Rosa, um senhor de cor que
era uma raridade naqueles tempos, tinha posses, era dono daquela casa bem
construída, na esquina da antiga Rua Boiadeira com a Avenida Francisco Porto,
onde ficava sua chácara. O Sr. Antônio Rosa era fazendeiro, tinha quatro filhas
e dois filhos, todos estudando, além de ser ele o líder dos espíritas da cidade;
em sua casa, todas as sextas-feiras se realizava a tradicional Mesa branca,
quer reunia inúmeros participantes. Ali acabava a cidade e começava a nossa
zona rural.
Se a gente ia até a esquina da
Rua Floriano Peixoto e olhasse para cima, à direita, via que a rua ia acabar
cinco quadras acima, numa rua que devia ser a atual Avenida José Fortuna. Ali a
cidade também parava, dando de cara com a casa da família Ortega. Virando à
esquerda, logo se encontrava a casa da Comadre Vitalina, aquela dos divinos
biscoitos de polvilho, de onde saía a estradinha que levava às chácaras e sítios
que se situavam entre a estrada de Itajobi, cuja saída era na Av. Campos Salles
e a estrada de Tapinas, que saía pela Rua José Bonifácio, atual José Trevisan e
passava pela Piscina do Salim. É desta parte que quero lhes falar hoje.
Quem viveu aquela época vai se
lembrar de como era movimentada a nossa Avenida Campos Salles, a rua do
comércio de então. E há de se lembrar também da riqueza de nossas chácaras e
sítios daquela região do nosso município. Aquela estradinha simpática,
sossegada, sempre boa para transitar, levava a lugares abundantes de verde, de
frutas, de verduras, de todo tipo de roça, era o cantinho da fartura. Ali se
destacavam os sítios do Sr. Manginelli, com sua horta viçosa e rica em verduras
e legumes, plantados no excelente solo de nossa terra e cuidados com o carinho
daquela gente especial, como também eram o Sr. Antônio Mazzo e Dona Verônica e a
fantástica família do Balthazar que, além do pomar encantado, do engenho que
produzia o melado delicioso, brindava os visitantes com sua piscina bem
organizada, onde havia cabines para vestiários, trampolim e mesinhas para um
lanche.
Eu tive a oportunidade de ir
várias vezes ao sítio do Sr. Manginelli, que era paesano (patrício) do
meu Nono, com quem fui lá quando criança e voltei lá, com meu pai, quando já era
moço e pude ver o Sr. Manginelli, com seus já bem passados oitenta anos, subir
no pé de laranja lisa, depois no pé de fruta do conde, para apanhar as frutas
selecionadas pra gente levar pra casa.
No sítio dos Mazzo fui quando já
era cunhado do Jacintho, que pra lá levou minha irmã Zizinha, fazendo-a realizar
um de seus sonhos de menina de “um dia ainda vou viver no sítio”. Era
época da safra de melancias e nunca tinha visto tamanha plantação delas. Ali
viviam o Sr. Antônio e Dona Verônica, uma mulher ativa e inteligentíssima, mais
o Jacintho e a Zizinha e, que me lembro, os irmãos Lourenço, Pedro e
Agostinho, meu companheiro de Congregação Mariana.
No sítio dos Balthazar viviam o
próprio, Balthazar, o Antônio, o Benedito, o Jorge e a Jorgina, ainda solteira,
nessa época. Era uma família unida, muito religiosa, sempre alegre, festiva e
hospitaleira. Era muito gostoso visitá-los, pela maneira alegre e gentil com
que acolhiam seus visitantes.
O Antônio cuidava da roça e do
pombal, riquíssimo em pombos de várias plumagens. Como viu meu encantamento
pelas aves, apressou-se a me dar de presente um casal de filhotes, Ensinou-me a
cuidar, alimentar e vigiá-los. Assim comecei o meu pombal, lá no fundo do
quintal, junto ao muro dos Brunelli, só que exagerei na dose e logo estava
cuidando de umas 20 pombas. Aquilo virou obsessão, eu passava o dia pensando nos
meus pombos, até o rendimento no Grupo Escolar começou a cair. Uma manhã veio a
tragédia! Acordei, levantei-me e fui correndo, como fazia toda manhã, ver meu
pombal! E qual não foi meu desespero ao encontrá-lo destruído, um monte de penas
espalhadas pelo quintal. Quando levantei a cabeça, lá estavam meu pai e minha
mãe me consolando.
-“Foi uma ataque noturno do
perdigueiro do Sr. Ângelo Mortati, o Ronda”, disseram. Sofri demais, tomei
raiva do Ronda, embora algo me dizia que podia não ser ele o “exterminador de
pombas”. O Ronda, como todo perdigueiro, era de paz, até mesmo bem
preguiçoso, será que teve um surto repentino?
O Balthazar cuidava com esmero
do pomar, do engenho e da piscina. Era ele o responsável pelas atividades de sua
família. O Dito cuidava da horta com o auxílio da Jorgina. O Jorge cuidava da
criação. Assim, aquele sítio ia sempre muito bem, um ponto de encontro dos
itapolitanos nos fins de semana.
O Dito tinha uma qualidade à
parte. Era perito aplicador de injeções. Acudia toda a vizinhança e todos que
lhe pediam uma aplicação. E era um mistério! Como que o Dito Balthazar aprendeu
a técnica de aplicar injeções?
Pois é, aconteceu que o Sr.
Antônio Mazzo adoeceu, foi piorando e a situação se complicou. Meu pai reuniu
nós todos e fomos à noite lá no sítio do Sr. Antônio fazer vigília, rezando por
sua saúde, um costume muito bonito, da gente daquela época. Eu era adolescente,
por isto fiquei com o Roberto e a Maria Izabel, lá fora, no terreiro junto da
casa, iluminado por alguns lampiões a gás. Ali rezávamos liderados pela Maria,
filha mais velha do Sr. Antônio, quando vieram chamar o Dito Balthazar, ele
precisava aplicar uma injeção na veia do paciente.
O Dito atendeu com a habitual
presteza e daí a uns vinte minutos voltou e se acocorou perto de um grupo de
vizinhos. Alguém, não me lembro quem, correu perguntar pro Dito como ele
aprendeu aplicar injeção na veia. O Dito, que era muito vivo, percebeu um certo
tom de incredulidade na pergunta, olhou pro rapaz e lascou a resposta: -“Aprendi
treinando nas rolinhas!” E que jeito o atrevido ia poder contestar? Nunca me
esqueci daquela resposta que denotou tamanha e incrível presença de espírito do
Dito Balthazar, típica do matuto brasileiro. |