Eu tive um amigo
muito culto, muito inteligente, que quando via a gente gripado,
fazia questão de aconselhar: “Cuide-se muito bem, amigo, cuide
do corpo e do espírito! Gripe não é doença, é um estado de corpo
e de alma!”
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Quando ela chega, não tem
jeito... |
E toda vez que
contraio uma gripe, coisa que me obriga a entrar em recesso,
fazendo pausa às andanças, aos encontros com amigos, diminuindo
as visitas às páginas da Internet, às leituras, aos meus
hobbies, o que me leva a uma espécie de inércia, passo o meu
tempo a refletir sobre tudo que me cai à mente. E uma das coisas
que me vejo fazendo é a tentativa de entender ao fundo aquela
categórica afirmativa do meu amigo. Será a gripe um estado de
corpo e de alma?
Aí me vêm à
lembrança as minhas gripes periódicas, que começaram bem na
infância, naquele quarto da casa em que nasci, em tempos de
forro de pano, de janela sem venezianas, de poeira da rua de
terra, de vento sibilante.
Lembro-me que o
cheiro que mais me atingia era o das frituras no fogão à lenha,
que me deixavam confuso entre a gulodice e o enjôo. E aí eu
constato que sempre foi assim, todas as minhas gripes foram
iguais, desenvolvendo em mim as mesmas sensações, os mesmos
desejos, as mesmas repulsas.
Prostrado
naquela cama de colchão de palha, passeando os olhos nas manchas
do forro que ganhavam formas e às vezes vida, ouvindo os ruídos
que indicavam que lá fora a vida continuava para o meu pai, para
minha mãe, para meus irmãos, só se interrompendo para aquela
rápida visitinha que me faziam, pondo a mão a minha testa,
acertando as cobertas que estavam desalinhadas, logo voltando ao
seu trivial.
Dali eu ouvia as
marteladas na bigorna da oficina do meu pai, ora dele, ora do
Romeu; dali eu ouvia os choros e as risadas dos meus irmãos mais
novos, a conversa dos passantes na calçada, o canto das rodas
dos carros de boi que chegavam com o café em coco ao depósito do
vizinho.
Todas essas
sensações competiam espaço com os sintomas, com as dores, com o
rosto afogueado pela febre, com a minha tosse, os meus espirros.
E toda vez que me via gripado, acamado, ressurgia infalivelmente
a predileção irresistível pelos bolinhos de arroz, que logo me
eram servidos pela sábia intuição de minha mãe.
Estou ainda me
convalescendo de uma das mais duras gripes que já tive. E essa
foi tão aguda, tão torturante, tão insistente, que nada que se
acrescentou a mim e à minha forma de viver, desde aquela
infância, nada conseguiu livrar-me da dependência daquela cama,
daquelas cobertas, daquela necessidade do escuro, da dedicação
envolvente da Mara e das perseverantes reflexões.
A esta altura da
vida sinto que está na hora de concluir minhas conjecturas, de
responder às minhas indagações, pelo menos essas sobre o que é a
gripe. E me rendi àquela decretação convicta do meu grande
amigo, Norman: a gripe não é doença, é o estado d’alma que força
o corpo a aderir, levando a gente a pensar a vida, a reconhecer
sua fragilidade, a sentir que é possível deixar tudo pra lá e
ficar interpretando as silhuetas das manchas dos forros de pano
que nos protegem do buraco negro do infinito.
Nada se
assemelha à gripe, estado de corpo e alma que nos visita desde a
mais tenra infância e que tem a fidelidade dos encontros
periódicos. Será doença um estado de corpo e de alma que
raramente leva seu escolhido à morte? Você já ouviu contar que
alguém morreu de gripe?, a não ser destas que tem
sobrenome, gripe A, gripe espanhola, gripe de tal?
Mas aposto que
você tem também uma coleção de registros de sensações, reações,
gostos, cheiros, sons que são típicos da sua gripe. Cada um tem
a sua gripe, toda particular, toda sua, única e inigualável. E
todas elas nos remontam à infância. A minha me reconduz à casa
da Av. Francisco Porto, nº 36, do município de Itápolis, berço
da minha fidelíssima amiga, a Dona Gripe. |