Na semana que
passou, que é Santa, resolvi passar no mínimo uma hora por dia
meditando sobre o significado do sacrifício de Jesus em favor da
humanidade. E, enquanto pensava, vinham-me cenas que lembravam
Sua aflição, Seu isolamento, Sua entrega e Seu martírio.
E essas cenas
todas eram registros das imagens, do grande crucifixo e dos
quadrinhos que ilustravam a Via Sacra na Igreja Matriz da minha
Itápolis. Na sua nave, enorme para uma criança, descobri a
sensação do infinito, pois quando olhava para o teto procurando
suas pinturas, eu enxergava além delas, meus olhos alcançavam o
céu, vislumbravam o Pai Eterno. Desde bem menino eu tracei a
fisionomia de Deus e hoje eu vejo que, a imagem que faço d’Ele,
não mudou em nada.
O clima da
Quaresma, que naquele tempo, era rigorosamente triste, sombrio,
silencioso, com os sinos calados, as flores ausentes, as belas
imagens nos altares escondidas sob o manto roxo, os rádios e as
vitrolas das casas desligados, os bailes e as “brincadeiras
dançantes” suspensos; tudo aquilo me dava um frio na boca do
estômago e um medo estranho de ser eu o culpado; culpado porque
nasci trazendo em mim o “pecado original”.
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A tradicional
Procissão do Encontro de Jesus com sua Mãe |
Foi a Dona
Mazé quem disse, foi a Elza Sene quem repetiu nas aulas de
catecismo. Quando chegava a quinta feira, que eu ia com minha
mãe à Procissão do Encontro, que saía da igreja logo de
madrugada, com os que levavam a Mãe de Jesus, num andor sem
flores, descendo a Florêncio Terra e saindo para o lado
contrário os que levavam Jesus, num andor bem rústico, subindo a
mesma avenida, eu sentia uma dolorida angústia a apertar meu
peito, que só se aliviava quando a Mãe d’Ele o encontrava na
esquina da Av. 7 de setembro com a Av Francisco Porto, alívio
ajudado pela voz da Maria Villela, que cantava uma cantilena
triste, mas de melodia suave e aquilo me provocava uma emoção
indescritível, que vinha do fundo d’alma e me envolvia inteiro.
Eu sentia as
lágrimas escorrerem pelas faces e lembro que uma vez perguntei
pra minha Nona Beatriz: “Por que ela não puxa Ele e não esconde
Ele em algum lugar?” Lembro-me também que minha nona me olhou
firme, balbuciou algumas palavras ininteligíveis, mas não deu
resposta alguma.
Na crucial
Sexta Feira Santa, desde a hora do almoço, chamado pelo som da
matraca, eu ia com minha mãe fazer vigília por Jesus já
perseguido. Era um clima de grande tristeza, a Igreja se via
lotada de homens e mulheres de várias classes sociais. Eu que já
tinha tido a grande emoção de assistir ao “Lava pés”, na quinta
feira à noite, emocionante, embora eu não atinasse com seu
verdadeiro sentido, sentia uma sensação de importância, porque
sempre o quarto da fila era o meu Nono Nicola, todo compenetrado
nas suas vestes a caráter. Também estavam lá o Vitório Zarelli e
o Atílio Brunelli que eram nossos vizinhos, o que me dava a
impressão de serem “amigos” de Jesus.
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Jesus é
descido da cruz |
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Jesus
carregando a sua cruz |
E quando
chegava a hora de descerem Jesus da cruz, daquela mesma cruz
onde o via crucificado na parede do fundo da ala esquerda da
nave, toda vez que eu ia à igreja, eu não aguentava a emoção e
escondia o rosto nas vestes de minha mãe. Aquele crucifixo na
parede, com aquele Jesus, o mais perfeito que já vi em imagem,
sempre exerceu sobre mim um verdadeiro fascínio.
Até hoje,
quase oitenta anos depois, quando me lembro dele, fecho os olhos
e ele se reproduz perfeito em minha retina cansada. Em nenhuma
outra igreja vi imagem tão real, vi a tosca cruz tão bem
reproduzida, que me acompanha e me protege pela vida afora.
Quando saí de casa para estudar, minha mãe colocou na minha
carteira uma cruz recortada em papelão amarelado, trazendo a
inscrição “ELE PODE SOCORRER” e essa cruz me acompanhou sempre,
em todos os lugares, até mesmo na prisão onde me puseram,
acusado de não acreditar em Deus. Esta cruz, que está aqui
comigo até hoje, é para mim a reprodução da grande cruz da minha
Matriz.
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Verônica e
sua triste e bela melodia |
À noite,
naquelas sextas-feiras, minha tristeza se multiplicava em
lágrimas silentes, ao ver passar silenciosa a procissão do
enterro, com aquelas fisionomias tristes de quem carregava
aquelas velas acesas, a emoção que aquilo me causava é
inesquecível e chegava ao clímax quando Verônica, personagem
bíblico representada por uma moça vestida em trajes pretos, em
cima de uma cadeira, desenrolava lentamente o sudário até exibir
inteira a imagem feita em sangue do rosto de Jesus martirizado,
enquanto entoava uma triste e bela melodia.
Curiosamente
não guardei na memória as cenas do Sábado da Aleluia; naquele
tempo a Igreja comemorava a Aleluia no sábado, às 10 da manhã.
Os sinos da matriz repicavam alegres, ouvia-se o espocar dos
fogos que festejavam Jesus ressuscitado, mas eu nunca acorri a
aqueles festejos, eu nunca tive vontade de ver a malhação de
Judas.
O Domingo de
Páscoa, a Missa solene e cantada das 10 horas, com os padres
paramentados em vestes com faixas douradas, a igreja toda
florida, as imagens que pareciam voltar sorrindo, a pequena
imagem de Jesus empunhando uma espécie de flâmula amarela,
aquilo sim era a minha Aleluia. E tinha mais uma coisa que me
alegrava muito naqueles domingos de Páscoa: minha Nona, minha vó
Nenê, minha mãe, minha irmã Zizinha, todo mundo dizia que a
Páscoa era o dia apropriado para “perdoar”. E eu me sentia
aliviado por ser perdoado de todas as minhas traquinagens e
perdoava todo mundo. E até hoje eu perdoo todos que, aberta ou
ocultamente me julgaram, me magoaram, me ofenderam, me
humilharam, me foram ingratos.
Perdoar
alivia a alma, convido a todos a que façam o mesmo, se não o
fizeram no domingo, pois todo dia é Dia da Páscoa! |