Como eram as
famílias na minha mais tenra Itápolis? Como viviam, como eram
compostas, como se relacionavam, quais eram suas atividades,
seus passatempos, suas preocupações?
Eu nasci em
1932, mas posso descrever as famílias antigas desde os anos 20,
isso porque, nos velhos tempos, era hábito contarem às crianças
e aos jovens, tudo que fez parte da história de suas famílias.
Naqueles tempos se conversava muito, se contavam histórias,
“causos”, tudo nos mínimos detalhes. Toda família tinha membros
que tinham aptidão para relatar coisas do passado. Na nossa
família quem fazia isto era minha mãe. Por ela a gente soube
como viviam as crianças do começo do século, os jovens dos anos
10, as pessoas dos anos 20. Nestes tempos de rigoroso inverno
que vivemos hoje, vêm-me à lembrança as conversas em torno do
fogão à lenha, minha mãe, rodeada pelos filhos, contando
histórias, que eram suas, de suas irmãs, de seus pais, avós, de
seus vizinhos, de seus amigos. Ouvindo aquilo, formavam-se na
cabeça da gente cenários detalhados nos quais se davam aquelas
histórias.
Eu soube, desde
muito pequeno, que minha avó Nenê, mãe de minha mãe, casou-se
com 13 anos de idade, fato comum no fim do século 19. A família
de minha mãe era numerosa, pois abrigava pai, mãe, filhos, avó
materna, a vó Ginja, e os agregados. O que eram esses agregados?
Eram pessoas, geralmente parentes e contraparentes que, por
terem sido criados naquela casa, quando chegavam à idade adulta
iam ficando por ali, fazendo serviços domésticos, serviços
braçais, servindo de babás, de acompanhantes de doentes, de
idosos, de inválidos, enfim servindo aos seus parentes de melhor
condição econômica e social e em troca recebendo a comida, a
moradia, o convívio, alguns recebendo estudos, ajuda para se
casarem e tantas outras coisas. Não eram considerados
empregados, alguns os chamavam de criados. É justamente da
categoria de “agregado” que surgiram as expressões “criado”,
“criada” e “criadagem”.
Os agregados
foram muito importantes na composição das antigas famílias
brasileiras, aliás é preciso que se diga, esta categoria de
membros das velhas famílias só existia nas famílias tipicamente
brasileiras, de origem remota e recente de portugueses. Isto
não acontecia com as famílias de imigrantes. Alguns
historiadores e sociólogos atribuem sua existência à experiência
escravagista que ainda estava muito próxima para as famílias.
Afinal a abolição foi um processo lento que teve início em 1888
e nós estamos falando aqui de anos 10 e anos 20, do 1900.
A criadagem, os
agregados, tiveram sua existência arrastada até os anos 40,
durante os quais este costume familiar começou a se extinguir.
Eu sabia de sua existência numerosa pelos relatos minuciosos de
minha mãe, mas pude ainda conhecer muitos deles, tanto na minha
família materna, como em outras famílias. Devagar a relação dos
“criados” foi-se alterando, eles foram assumindo funções mais
condizentes com a condição de “membros” das famílias, e a adoção
cada vez mais efetiva da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho)
por parte dos patrões foi tornando mais atraentes os empregos
fora de casa, eliminando do arcabouço social esta antiga
categoria, a dos “criados”. É preciso dizer que o “agregado”, a
“criadagem”, foi um fenômeno que teve sua origem nas antigas
fazendas, onde era um hábito muito mais comum.
Se nas famílias
tipicamente brasileiras havia esta peculiaridade, a do
“agregado”, nas famílias de imigrantes também havia hábitos e
tradições bem singulares. As mulheres de imigrantes europeus,
via de regra, eram avessas à contratação de empregadas
domésticas e, como o “agregado” não existia em suas famílias,
elas se encarregavam de toda a lida da casa, desde a lavagem de
roupa, passando pela limpeza e arrumação da casa, até à cozinha.
Daí a fama da “mama” italiana, da “madre” espanhola, daí o
hábito de, aos domingos, irem em busca do famoso “macarrão da
mama”. Os imigrantes faziam uma clara distinção entre filhos
homens e filhas mulheres. O “figliomaschio” já nascia com status
de preferido, fato que envolvia toda a relação familiar, desde a
afetiva até a jurídica, pois aos filhos do sexo masculino era
destinada a maior parte da herança. Como naqueles velhos tempos,
anos 10 e 20, às mulheres quase não se permitia a extensão dos
estudos para além do curso primário, as filhas tornavam-se as
ajudantes de suas mães nas tarefas domésticas. Isto criou uma
curiosa conceituação da moça em idade de casar. As filhas de
imigrantes eram vistas como futuras “ótimas donas de casa”,
enquanto que as filhas de brasileiros eram vistas como
“melindrosas”, o que corresponde à “patricinha” dos dias atuais.
Daí, deduz-se, o grande número de “solteironas” presentes nas
famílias brasileiras daqueles tempos, coisa rara entre as
famílias de imigrantes.
Nas crônicas que
comporão o volume 2 do meu livro, agora dedicado às antigas
famílias da nossa cidade, estas particularidades e muitas outras
serão narradas e descritas com detalhes, a fim de dar ao leitor
uma visão completa da estrutura, dos hábitos, do modo de viver
das nossas mais antigas famílias. |