Nos velhos
tempos da minha Itápolis, fins dos anos 40, entrávamos na
segunda metade do século XX, tempo de nossa juventude, com
a vida prometendo tudo, com a alma cheia de sonhos,
achávamos que o mundo que nos rodeava continuaria sendo o
cenário físico, humano, social e cultural que emolduraria
para sempre as nossas vidas, os nossos passos. O mundo, num
todo, evoluía calmamente, os costumes, os gostos, o modo de
viver iam passando de pai para filho, de geração para
geração, tão certo isto que nos considerávamos herdeiros de
nossos antepassados e que, por mais incógnitas e misteriosas
que fossem nossas aventuras e nossos desafios no futuro,
estaríamos sempre amparados nos princípios sólidos que
recebemos desde a infância.
Eram tempos
de calmaria nos mares por onde navegávamos, herdávamos tudo
de nossos pais, de nossos avós, eles nos repassavam os
gostos musicais, as tendências da moda, de uma moda que
dificilmente experimentava grandes mudanças. Os hábitos das
pessoas continuavam os mesmos que caracterizavam as relações
de nossos avós, não se percebiam grandes variações. A
população aumentava quase que imperceptivelmente, o mapa
geográfico da cidade não sofria alterações há muitos anos,
nós nem tínhamos bairros, havia pontos de referência, como o
Largo de São Benedito, o Buracão, o Buraco Quente, que
serviam de orientação, como servia o Ponto das Jardineiras
ali na Padre Tarallo.
O modo
tímido de namorar, a maneira respeitosa de tirar uma dama
para dançar, o ato educado de dar o canto das calçadas aos
mais velhos, às senhoras, o tratamento respeitoso que os
mais jovens davam aos mais velhos, os irmãos mais novos aos
mais velhos, o enorme respeito pelos pais, pelos avós, pelos
tios, tudo isto eram costumes que a gente achava que sempre
foi assim, que assim deveria sempre ser.”Bênça pai, bênça
mãe, bênça vô, bênça vó, bênça tio, bênça tia” eram
expressões originadas de hábitos que se exercitavam de forma
mecânica, espontânea, automática. Eu estudava em dois
períodos, à tarde e à noite, nos meus 16, 17 e 18 anos e por
isto chegava em casa à noite e meus pais já tinham ido
deitar. Eu nunca deixei de chegar pertinho da porta do
quarto deles para pedir baixinho: “Bênça pai, bênça mãe”.
Isto era hábito de todos os meus colegas, de todos os meus
amigos. E nem eu, nem eles, nunca pensamos que um dia isto
fosse acabar.
Naqueles
velhos tempos, de modo geral, os filhos recebiam tudo que
precisavam, as crianças eram tratadas com muito carinho, se
ficavam doentinhas, a mãe e o pai, assim como toda a
família, os vizinhos, todos se dedicavam a cuidá-la, com
desvelo; as crianças ganhavam presentes, roupas e sapatos
novos, guloseimas, passeios, mas eu disse “ganhavam”, não
impunham e não tiranizavam seus pais quando queriam alguma
coisa. A criança, o jovem adolescente, o dependente dos
pais tinham limites, encaravam com naturalidade a lei do
“isto pode”, “isto não pode”.
Outro traço
que marcava o modo de agir das famílias daqueles velhos
tempos, era o culto à sobriedade, ao recato, ao respeito por
si mesmo. Raramente se via uma família que incentivasse uma
de suas crianças a ser extremamente vaidosa e exibida. A
roupinha bem cuidada, o cabelinho penteado no capricho, os
sapatinhos bem tratados nos pés também eram um hábito, era
uma forma controlada de deixar extravasar a vaidade natural
do ser humano. O ser humano, daquela época, cuidava
prioritariamente da alma, do caráter, do seu conceito
perante seus semelhantes, não havia nem sinal do que estava
por vir, ou seja, a extrema preocupação pelo corpo, pela
aparência, que chega hoje às raias da obsessão.
O conceito
de beleza que prevalecia entre os jovens dos anos 40 e 50,
era aquela que nascera e se desenvolvera naturalmente em
cada criatura, as pessoas de então abominavam os recursos
artificiais. Nos anos 50 e ainda durante muito tempo, a
miss , para chegar a este título de beleza, tinha que
ter tudo rigorosamente natural, não podia lhe faltar um só
dente, não se aceitava nada postiço, nada que fosse
resultado de implante, de cirurgia plástica, de tintura, de
permanentes, de alisamentos, diziam até que, para ser
miss, tinha que ser virgem,
Muitos de meus leitores poderão achar que tais costumes eram
excessivamente rígidos, que tinham que sofrer mudanças.
Concordo, mudar é natural e necessário, mas penso que
existiu grande perda nestas mudanças, hábitos e princípios
que são essenciais ao bom entendimento entre pessoas,
hábitos que promovem a justiça nos tratos da vida familiar,
atitudes que preservam o ser humano do egoísmo exacerbado,
que buscam afastar o homem da violência e do materialismo
puro. Principalmente quando pensamos nos limites, que
reforçam, e muito, o princípio da igualdade.