Durante este
retiro de um mês e meio, se pensam que desliguei a memória
abafando as lembranças que alimentam minha saudade, ledo engano.
Durante os muitos momentos de lassidão, o que me estimulava era
a viagem imaginária entre cenários, sendas, horizontes, entre
rostos, roupagens, gestos, palavras, entre sons, odores,
paladares que se confundem, se misturam, ora ressaltados, ora
camuflados, tudo isso me devolvia os primeiros tempos de minha
vida.
Nestes longos dias de silêncio e quase trevas, vultos, silhuetas, ondas
sonoras, doces sabores e tênues perfumes invadiam meu espaço e
meu momento, transformando-se nas imagens que colhi naquela casa
grande e esparramada em que nasci, naquele quintal cheio de
verde e de veredas, naquele quarteirão cheio de rostos
familiares, naquele bairro dos baixos de minha terra, banhados
pela sonoridade dos sinos da Matriz, num turbilhão de imagens
que surgiam turvas e furtivas e devagar iam revelando o meu
pequeno mundo de criança. Como se enraizaram em mim tantas
lembranças!
Eram as
tardes domingueiras no terreiro ao lado do poço, da vasca, da
tina dos dias úteis, nas quais se reunia a família, os tios, os
vizinhos, os amigos, no jogo de malha, no saborear as enormes
laranjas baianas que meu pai trazia em sacos de estopa da
chácara do Salim. Ali estavam meus irmãos mais velhos, o
Nicolino e o Romeu, por quem eu nutria enorme admiração, por
achá-los hábeis e frequentemente vitoriosos; ali apareciam meus
amigos Vadinho, Lalo e Zoca, meu tio Micutcho, meu tio Roque,
meu tio José... todos ainda cheios de vida, de saúde e de
juventude.
Um pouco mais
crescido, já protagonista das aventuras infantis, minha vista
meio turva divisava a figura morena do Cocada, aquele vigia do
Posto do Armentano que nos contava histórias incríveis e se
divertia quando nos enchia de medo dos “causos” de assombração e
de esqueletos que desfilavam na madrugada chocalhando os osso em
suas danças macabras. Eu achava que a noite vinha de Itajobi, o
amanhecer vinha de Araraquara, a poeira vinha de Borborema e o
anoitecer vinha de Ibitinga. E Ibitinga, para mim criança, era a
casa do Dr. Artur Pinto, um casarão avarandado que ficava na
esquina da Florêncio Terra, em frende à casa das Marconi. Minha
Vó Nenê morava pra lá de Ibitinga, pois a casa dela era um
quarteirão depois da casa do Dr. Pinto.
O prédio da Cadeia e do Fórum eu achava que era o governo do Brasil e
aquele homem de terno cáqui que estava sempre na janela alta do
Fórum era o Getúlio Vargas, presidente da República, de quem a
Dona Diná, nossa professora do Grupo Escolar, todo início de
aula falava de sua vida. E descobri porque a casa do médico era
Ibitinga, é porque a Dona Diná, toda vez que falava Ibitinga,
apontava para o lado dela. E toda vez também que falava do
Brasil, apontava para o prédio da cadeia. Como a gente conseguia
reunir em tão pequeno espaço os horizontes da região, a
imponência da nação!
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As imponentes
torres da nossa Igreja Matriz por onde as nuvens
passavam formando diversas
figuras |
Minha
imaginação podia fertilizar os campos, de tantas visões
fulgurantes e belas. Quando pela manhã eu avistava a aurora e
pensava “olha lá as luzes de Araraquara, logo irão se apagar”.
Minha mãe dizia que eu era a distração em pessoa, quando me via
por longo tempo de olhos fixos nas duas torres da nossa
majestosa Matriz. Eu sempre achei majestosa a nossa igreja, no
alto da colina. Às vezes eu passava horas no meio do quintal,
olhando para o ceu vendo desfilarem as nuvens, que tomavam
formas humanas, bancavam caras de cachorros, de touros
chifrudos, de velhos barbudos, as nuvens eram meu passatempo
predileto, até o dia em que de uma delas saiu uma faísca
rabiscando o ceu e dando aquele estrondo assustador que me fez
voar pra dentro!
Apanhei muito
por causa desta cabeça avoada, sempre buscando o distante, o
invisível, o misterioso. Minha mãe, mulher sofrida na labuta,
nos cuidados e nas lidas domésticas de uma casa numerosa de
filhos e de pensionistas, me arrastava para a mesa da sala para
fazer as lições da escola, mas não quebrava os encantos de
minhas viagens pela vadiagem imaginativa. Só me acordavam os
seus petelecos nas orelhas, seus gritos vociferantes a me
sacudir. Na sua fúria contra a minha distração, quantas vezes a
Dona Bebé jogou pra cima meus livros e cadernos!!! Eu tinha um
dicionário de capa preta e muito grosso, que de tão velho
espalhava suas páginas pelo chão. E era demais ver depois, minha
mão catando folha por folha e colando-as em seguida, paraEstas
impressões da infância, das manhãs orvalhadas, das tardes
ensolaradas e das noites cobertas daquele manto de estrelas e
constelações, calaram fundo em minh’alma e dela não se
desprendem mais. Descrever tais sentimentos, revolver a
lembrança para recuperar aqueles lugares, aquelas pessoas,
aquela atmosfera, é para mim um ato de renovação da vida, que
faço com enorme alegria e muito amor no coração. |