Minha mais tenra Itápolis abrigou
gente de toda parte, gente que vinha trazendo sua experiência,
seus dotes profissionais, seus conhecimentos de terras
distantes, suas ideologias e suas crenças, e até mesmo houve os
que traziam sua descrença. Vindos de cidades distantes, de
estados mais distantes ainda, de países longínquos, homens e
mulheres vieram compor a anatomia de um povo, traçar-lhe o
semblante, os gestos e as atitudes. E para isto era mister o
alinhavo de um traço cultural que desse a marca e sustentasse a
fisionomia da gente itapolitana em formação.
Da doce terra de França, de língua
suave e melodiosa, chegou-nos a gente dos Mallet. Vindos de
terras que viram brotar por séculos e séculos a poesia dos
bardos de Provença, a melodiosa música dos lioneses e dos
auvernazes, os Mallet só podiam mesmo semear o saber, a arte, os
exemplos de conduta civilizada e humanista. O primeiro destaque
desta família abençoada foi o mestre Júlio Ascânio Mallet, que
fundou o nosso tradicional Grupo Escolar. O antigo Grupo Escolar
Antônio de Morais Barros, onde minha geração todinha estudou
vendo este nome em sua fachada, foi criação do mais velho dos
Mallet que tive a honra de conhecer. De sua filha Julieta, que
promoveu esta aliança quase que monolítica dos Mallet-Cyrino,
casando-se com Luís Cyrino da Silva, o respeitável Juiz de Paz
de nossa antiga cidade dos anos 30 e 40, surgiu esta família que
como caudaloso rio de cultura e saber, espalhou seus defluentes
pelos rincões, levando a luz das primeiras e demais letras,
fazendo ecoarem os sons de refinados instrumentos musicais,
acalentando ideais que influenciaram várias gerações.
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Dª Guilhermina Mallet, a
querida Dª Nhanhã, com suas alunas |
Eram filhos de Dona Julieta e de
Luís Cyrino, o
Luís,
a Guilhermina (a tão conhecida Nhanhã), René, o excelente
Professor René, a Mary, a Nívea, a Maria (quem não conheceu a
doce e simpática Dona Cotinha?), a Flotilde, que experimentou a
vida religiosa na França, a Julieta e o Geraldo Antônio que,
comigo,
forma no pelotão dos sobreviventes daquela geração.
A Dona Nhanhã, professora e musicista ensinava nas escolas
primárias em que trabalhou, como a maestrina que era nas suas
aulas de canto orfeônico. A Nhanhã tinha espírito investigativo,
interessava-se por todos os acontecimentos, desde os municipais
até os internacionais, seu espírito carregava a inquietude dos
que endeusam o pensamento. O Professor René dominava as várias
disciplinas com a mesma desenvoltura com que executava os
instrumentos musicais, principalmente as cordas, o Geraldo com
seu violino, dava um ar de orquestra às nossas serenatas. Tive o
privilégio de conviver um pouco com alguns membros desta família
incrível. O Geraldo foi meu colega de Escola Normal e meu
companheiro de serestas. Lembro-me bem de sua participação, o
único que tocava por música, por isto vinha acompanhado de uma
estante, sobre a qual pousavam as partituras, que lia graças ao
auxílio de um farolete empunhado pelo Wilson Marin, sobrinho de
Dona Dalva Caivano e amigo do nosso violinista. Com o professor
René tive a honra de participar dos saraus realizados nas noites
de 6ª feira, no salão do Bazar 11, de portas cerradas, de
propriedade do flautista Sr. Mário Pizza, dono do bazar; ali
também brilhava o mestre do violão, o alfaiate Arthur Caetano da
Rocha. Com a Flotilde os estudantes amantes da língua francesa
buscavam seus comentários sobre sua vida na França e também
fruir de sua pronúncia perfeita do francês. Afinal, naquela
família a gente podia sorver cultura e arte.
Dona Julieta tinha um
irmão farmacêutico, o Julinho Mallet, que mantinha sua farmácia
na vizinha cidade de Borborema. O Sr. Julinho era casado com
Dona Celina, da família Mello, irmã que era do conhecido Paulo
Eloy, pai da Zezé Faria de Mello, uma das organizadoras do
Jantar dos Itapolitanos, realizado todos os anos na Capital.
Outra irmã de dona Celina era minha tia Mariana, esposa do tio
Elpídio Sene (tio de minha mãe, diga-se), farmacêutico e
professor de química nas horas vagas. Tio Elpídio e tia Mariana
tiveram uma penca de filhos, a começar pelo Décio, depois o
Hélio, professor e conferencista em Araraquara, o Célio,
flautista que volta e meia é visto em programas de TV, o Fábio,
médico e professor na Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão
Preto, a Maria Lúcia, livreira especializada em assuntos
esotéricos, lá no ABC paulista e o caçula, Elpídio. O Sr.
Julinho e Dona Celina tinham também um punhado de filhos: o
Álvaro Antônio, destacado aluno no nosso colégio, conhecia latim
como ninguém, a Maria Alice, a Lucy, a Idati e a Elza. Quando a
família do Sr. Julinho se mudou para São Paulo, o Álvaro ficou
morando em nossa casa, até completar o curso científico e em
troca, eu acabei indo depois morar em sua casa no bairro de
Pinheiros, durante meu primeiro ano de USP. Álvaro formou-se
dentista, embora se revelasse um ótimo estudante de línguas e
letras latinas. Era um Mallet!
Nossa Itápolis muito
deve a esta família de gente culta e de vanguarda no
conhecimento e na opinião. Muitos frutos brotaram deles. As duas
meninas, Leny e Nelly, filhas do Prof. René e de Dona Octávia
Compagno, desde pequenas impressionavam pela sua inteligência e
amor aos estudos. Isto explica que tenhamos uma Adriana, cheia
de criatividade artística.
Terra dos Mallet, dos
Cyrino, dos Mercaldi, dos Del Guércio, dos Brunelli, dos Gentil
e Gentile, do Leão Machado, prêmio Jabuti com seu livro “Iperoïg”,
do poeta Pero Neto, dos Sene, dos Mello, do Geraldo Hauers, do
Adelininho Pereira, do Wilson Miranda, do Valentim Baraldi, do
José Fortuna, do Alcides Cacini, do Levy Bucalem Ferrari, de
um sábio como Julinho Sudário e tantos outros, não pode deixar
de se orgulhar de seus filhos. |