A antiga
“Seleções”, que tinha enorme prestígio entre nós nos anos 40, 50 e
alguns mais, tinha como uma das seções mais lidas, a que se
intitulava “Meu tipo inesquecível”. Ali o responsável pelo texto
falava de pessoas cujo tipo, cujo temperamento, cujo comportamento
chamava a atenção, impressionava positivamente e assim acabavam se
fixando na memória dos que as conheceram, sempre apresentando gente
de bom caráter, de boa índole. Eu também tenho na memória alguns
tipos inesquecíveis.
No tempo em que
vivi em Monte Aprazível, conheci pessoas que se eternizaram em minha
memória e é só pensar em seus nomes, fechar os olhos e a imagem, a
fala, os gestos deles desfilam diante de mim. Alguns deles já foram
focalizados em crônicas anteriores: Lavínio Luchese, Padre Altamiro
de Assis, Ruth de Carvalho Ceneviva, para citar alguns deles. São
pessoas cuja lembrança tornou-se indelével. Mas há muitos outros.
Você quer ver?
José Antônio
Pereira, o Zé Gordo, chamá-lo assim não é desrespeito, pois ele
mesmo se apresentava assim. Dá para esquecer uma pessoa como ele?
Para ser um santo só falta aparecer alguém contando um milagre dele.
Coração enorme, bondade extrema, humildade natural e espontânea,
professor de português do nosso colégio a todos conquistava com seu
jeito manso, sua fala acaboclada gostosa de se ouvir e pela alegria
que brotava só pela presença dele. De família das mais antigas da
cidade e região, Zé Gordo era filho do Sr. Joaquim Tula e de Dona
Lifonsina, tinha três irmãs que davam a mesma impressão de suave
bondade como a dele, a Maria do Nenzico, a Helena do tio Antônio, a
Daíde do Tula. Que família encantadora, que retrato de Brasil
autêntico, o encontro deles era um manifesto do mundo caboclo,
festeiro, religioso, doido por um arrasta-pé, por uma festa junina,
por uma folia de Reis. O Zé tinha uma chácara logo ali à direita da
subida depois da represa, onde organizava suas festas típicas pela
comida, pela música, pelos papos, pela alegria e pureza d’alma. Ali
ele promovia a chegada da Folia de Reis, o que era uma tradição, ali
ele reunia familiares, colegas professores, amigos, em reuniões que
eram só alegria. A família do Zé Gordo era enorme, tinha o lado dos
Tula, o lado dos Quitério e o lado da família de sua esposa, Dona
Cida (Maria Aparecida Rodrigues Pereira), filha de Dona Aurea, de
família numerosa e ligada à música. O Zé Gordo era primo do Sr.
Plínio, pai da Dirce, fato que nos aproximou ainda mais. O José
Antônio Pereira, também chamado na família por Zezé, não perdia
nenhum baile e no baile não perdia nenhuma dança; era um homem
pacato e paciente como ninguém; ele tinha um Fusca branco que diziam
que nunca usou a segunda e terceira marchas, de tão devagar que o Zé
dirigia. Ele tinha uma caminhonete que usava para ir ao seu sítio no
bairro de Canôas e também para levar as mulheres da família,
incluindo sempre a Dona Alice e a prima Cida Quitério, até a
chácara, onde iam fazer pamonhas, biscoitos de polvilho, lidar com
porco, tudo em clima de festa e alegria. O Zé foi aluno da Aliança
Francesa, numa classe que tinha pessoas das mais consideradas na
cidade, como a Professora Yolanda Abdalla, a Dona Glorinha Schmidt,
a Mariazinha, a Neide Maset, a Anísia Rodrigues, a Lucy Junqueira,
para citar alguns. O Zezé nunca faltou a uma aula sequer, era
aplicadíssimo, mas levava sua alegria e bom humor para a sala de
aulas. Quando penso no Zé Gordo, quando me lembro de sua figura, de
seu jeito sossegado de falar, eu me reintegro na minha origem do
lado materno, rodeado de parentes caboclos, de fala mansa e de modos
tranquilos. O Zé Gordo era um dos últimos baluartes de um Brasil
verdadeiramente campestre, de um universo sertanejo que se foi
perdendo com o tempo e é hoje vítima de uma exploração irresponsável
que não percebe o aviltamento que fazem contra uma cultura que era
marcada pela espontaneidade. O José Antônio Pereira, pai da Aurinha
e da Paula, com seu apelido que ele mesmo assumia, o Zé Gordo,
foi-se embora cedo demais, levando com ele grande parte da alegria
que respirávamos na cidade, levou com ele a catira, que herdou de
seu pai, a moda de viola, os arrasta-pés, a prosa macia e tranquila,
a alma cabocla. Com toda aquela natural autenticidade o Zé Gordo
abrigava um espírito arguto, uma grande sabedoria, com toda aquela
vagareza e paciência, o Zé Gordo era célere na observação, rápido no
pegar as coisas no ar, ele não era nada fácil de enganar. Que
criatura maravilhosa, que alma amoldada pela divindade, como eu
gostava do Zezé. E que falta ele faz no mundo de hoje.
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