Eu conheci a
Ruth, logo na primeira vez e no primeiro dia em que pisei em Monte
Aprazível. Ruth era a professora de Canto Orfeônico que, junto com
Dona Nena, a secretária, defendeu a minha posse como professor
efetivo de Francês, que estava sendo negada pelo diretor Olindo
Cavariani, por razões burocráticas. Perambulando pelas dependências
do Ginásio Estadual e Escola Normal, deparei, no seu corredor, com
um aviso colado à parede, no qual o diretor delegava à Professora
Ruth de Carvalho Ceneviva, a incumbência de responder pela Diretoria
da escola, a partir das 15 horas. Ali fiquei sabendo seu nome
completo e seu papel auxiliar sistemática no comando do Ginásio.
Convidado para um cafezinho em sua casa, conheci a Ruth na sua
intimidade, incluindo marido, José Ceneviva, professor de Educação
Física, seu pai, o jornalista já aposentado, Constantino de
Carvalho, sua mãe, Dona Ana Leite de Carvalho, sua filha Ana Maria e
seu pequeno José Armando; a Dulce ainda não havia nascido. Logo
deixei Monte Aprazível para trabalhar na Faculdade de Filosofia de
Rio Preto, mas já levei comigo a forte impressão que me causou a
Ruth, pela sua vocação para liderança, pela sua postura discreta,
silenciosa, sóbria, desprovida da vaidade comum às mulheres, todavia
provida de forte segurança e determinação.
Voltando para
Monte Aprazível, oito anos depois, em junho de 1964, encontrei a
Ruth morando em casa nova, apresentando a nova filha Dulce,
exercendo a vice direção do ginásio que estava em prédio novo,
ostentando então o diferenciado título de Instituto de Educação, já
batizado com o nome do fundador da cidade, Capitão Porfírio de
Alcântara Pimentel. Ruth auxiliava a administração do Diretor,
Professor Gino Papa, com a mesma forma discreta que escondia a
verdadeira líder da instituição. Ao lado de um Gino Papa italiano
típico, falante, barulhento, ótimo e querido diretor, Ruth era seu
avesso, discreta, fala mansa, sorriso entre lábios, mas competente,
informadíssima, sempre disposta a chegar com as soluções.
Conheci a Ruth
profissional, que girava por aquele imenso prédio com os olhos de
lince a não perder um só detalhe. Mas conheci também a Ruth que
prestigiava os professores, dava autoridade aos inspetores de
alunos, cobria de atenção a quem desconfiasse ela que estava
enfrentando problemas, fosse na escola, fosse fora dela. E conheci
melhor ainda a Ruth quando fui demitido pela Ditadura! Um dia depois
fui ao colégio buscar meus pertences, certo de que não tinha mais
espaço para frequentá-lo. Recebido pela direção, vi as lágrimas
correrem pelas faces do Gino Papa e o gesto discreto de passar o
lenço disfarçadamente nos olhos, da Ruth. Em seguida, Ruth me pegou
pelo braço e me dizendo “moço, você não vai sair assim daqui não”,
levou-me a cada sala de aula, pediu licença ao professor que nela
trabalhava e, em todas as classes, disse mais ou menos estas
palavras: “Hoje vocês estão perdendo este professor, que em pouco
tempo tornou-se tão querido de vocês. Tudo por obra da fúria injusta
com que os novos governantes estão tratando o povo brasileiro! O
professor vai embora hoje, mas lutaremos para que as coisas mudem e
ele possa voltar pra nós!” Emocionado, vendo meus alunos em prantos,
passei o dia quase todo, no pé da escada, escrevendo uma mensagem de
despedida em cada caderno de todos os meus alunos.
Eu já tive muitas
emoções, eu já fui surpreendido por inúmeras homenagens que
balançaram meu coração, mas igual à emoção deste dia, nenhuma se
compara. Basta-me fechar os olhos e estas cenas se projetam diante
dos meus olhos como se fossem reais, e eu vejo o rosto da Ruth
quando falava em cada classe, e o rostinho de cada aluno, de cada
aluna que me estendiam seus cadernos.
Esta é a Ruth que
ficou eterna em mim. Esta Ruth, junto com sua mãe, Dona Ana,
forneceu por longos meses, o leite que alimentava meus filhos. Esta
Ruth e seu marido foram os que organizaram uma “vaquinha” entre os
professores, que resultou no dinheiro que o Ceneviva me levou em
casa, como presente de Natal. Esta Ruth, junto com seu marido e seu
pai, Constantino, me esconderam no sítio que possuíam, quando o José
Ceneviva ouviu notícias de que eu corria risco de ser novamente
preso. Foi numa tarde nublada, eu fazia a barba no salão do
Alvarenga, hoje conhecido como Cacique, da dupla Cacique e Pajé. Era
ali na praça da Matriz. O Zé Ceneviva chegou, pediu licença ao
Alvarenga e disse-me ao pé do ouvido: “Quando acabar aqui, não vá
para casa, vá direto pra minha casa, lá você vai saber por que.” E
foi embora. Fiz o que ele mandou e encontrei o pessoal reunido na
sala da casa da Ruth. Estavam o Sr. Constantino, a Dona Ana, a Ruth,
a Ana Maria e o Berardinho e discutiam onde me esconder. Decidiu-se
pelo sítio, o Berardinho foi até minha casa de onde trouxe uma
maleta com roupas, papel e minha máquina de escrever; aproveitamos
que caía uma chuva daquelas e, no seu fusca vermelho, o Berardinho
me levou, por uma estrada que sai de trás da Represa, pelos lados
Iate Clube e fui parar na casa de um casal que nunca vira antes, mas
do qual nunca mais esqueci, o Sr. Arlindo, irmão de Dona Ana e sua
esposa, dona Nenê. Eles tinham um menino de uns 6, 7 anos, o
Alexandre e com estes três, ao contrário dos temores com que pra lá
eu fui, passei dezessete dias inesquecíveis, pela bondade da Dona
Nenê, a sabedoria e experiência do Sr. Arlindo e pelo apego mútuo
com o menino Alexandre.
Tudo isto passou,
a vida correu seu curso, os vinte anos de dificuldades e incertezas
foram embora, como tudo na vida se vai. A Ruth e eu tivemos alguns
desencontros, nada de tão grave, tanto que nem me lembro mais como
foi. O que lembro sempre, eternamente grato, é daquela mulher
dinâmica, determinada, munida de bom senso e de grande coração,
embora tímido, meio que escondido atrás de sua discrição, de seus
gestos contidos, de sua simplicidade. Chamei-a, vocês notaram, de
Ruth, nesta crônica, porque ela, há muito, tornou-se personagem
protagonista da história, chamá-la de Ruth é conferir-lhe o respeito
cívico que ela fez por merecer. Guardo comigo seu modo de caminhar
com as mãos às costas e seu sorriso enigmático. |