Monte Aprazível, na época em que passei a
viver nela, apresentava uma riqueza invejável de tipos humanos.
Conforme fui participando de círculos de amigos, pude ir conhecendo
a variedade incrível de pessoas dignas de destaque. Alguns eram bem
populares, pertenciam ao folclore local. Tínhamos, por exemplo, o
Beto Mazzaropi, um camarada de estatura mediana, forte, atarracado,
meio aloirado, que vivia de pequenos expedientes, desde serviços
braçais até cumprir pequenas incumbências como fazer entregas. Mas,
depois que tomava uns goles, modificava se jeito quietarrão e se
transformava em novos personagens, conforme a inspiração do dia.
Hoje ele virava fiscal da Fazenda, munido de um pedaço de papel e um
lápis, visitava as lojas da rua principal, fazendo anotações e
tomando ares de autoridade; outro dia ele parava nas esquinas e
anotava as multas que infringia aos motoristas que passavam, fazendo
gestos indicativos de direção como se fosse um guarda de trânsito;
uma noite ele parou na frente ao bar do Abílio, com um chumaço de
jornal amassado, botava fogo na extremidade do mesmo e fazia gestos
de engolidor de fogo, naquele dia ele era malabarista de circo. Beto
Mazzaropi não incomodava ninguém, era de pouca prosa e não perdia a
dignidade, nunca se viu o Beto em extremo estado de embriaguez,
recolhia-se cedo e amanhecia cheio de disposição para o trabalho,
alguns imaginários.
Outro personagem
notável era o camarada conhecido como Mané 21. Também vivia de
pequenos expedientes, abrigava-se no Albergue Noturno, que era
administrado pela irmã do Julinho Amarante, a Dona Dina (Herondina).
Ele tinha uma obsessão, não perdia nenhum enterro, fosse de quem
fosse; era só ele ouvir o triste repicar do sino da Matriz
anunciando a entrada para bênção do corpo de um falecido, que ele se
apressava, postava-se à porta da igreja à espera e ia na frente do
cortejo fúnebre até o cemitério, com seu chapéu preto à mão, os
cabelos suados à mostra, com ar circunspecto, respeitoso, ficava ao
lado da cova até jogar o último punhado de terra, numa atitude
puramente humana, sem distinção de classe, de idade, de sexo, era
sua homenagem totalmente desinteressada. Uma manhã em que eu me
dirigia à Aliança francesa para trabalhar, alguém me parou e disse:
“O Mané 21 morreu; morreu de frio na porta da Santa Casa”. A morte
daquele ser tão despojado me comoveu. Eu escrevia uma crônica diária
para a Rádio Difusora que ia ao ar aos dez para o meio-dia, no
início, ano 1965, na voz do excelente locutor Armando Costa Neto e
nos anos 67, 68 e 69, na voz não menos eloquente do Ivan Rui.
Cheguei na Aliança, sentei-me diante na minha máquina Triumph de
escrever e redigi a minha crônica, falando da morte do Mané 21.
Falei dos seus modos, seus lugares de frequência preferida e da sua
infalível presença em todos os enterros da cidade, em anos e anos de
sua vida. E terminei a crônica com esta frase: “Não há nenhuma
família que vive nesta cidade que não tenha tido um ente querido
homenageado em seu enterro, pela figura do Mané 21. Ele esteve em
todos, num gesto respeitoso e de amor cristão. Será que hoje ele vai
sozinho para o cemitério?” Ele teve um dos enterros mais
concorridos daquela época.
Outra figura que
enriquecia o folclore da cidade era o elegante, circunspecto e
vaidoso Natalino Cavalari, pessoa que tenho na conta de amigo.
Aparecia sempre à noite, vestido com seu terno alinhado, gravata bem
enlaçada ao pescoço, chapéu escovado e se juntava às rodas que se
formavam no bar do Abílio. Natalino assumia ares de “notável”, homem
de envergadura e adorava quando os circunstantes o chamavam de
“prefeito”; ele era, na sua candura, o “prefeito” simbólico da
cidade. Para fazê-lo feliz bastava levar-lhe algumas reclamações
sobre problemas da cidade, pedindo-lhe providências. Notava-se que
ele dava um ar de enorme respeitabilidade ao cargo que envergava.
Natalino usava um palavreado cheio de ss. O s no fim das palavras,
no seu modo de ver, era atestado de bom nível cultural. Eu o
considerava um ser humano respeitável, por sua candura, sua conduta
irreprimível, seu modo respeitoso para com seus semelhantes.
A galeria de
seres humanos especiais não para por aí, mas não cabem todos numa
única crônica. Vamos descrevê-los todos e homenagear-lhes a memória,
pois enriqueceram o convívio de todos nós. |