Minhas
viagens para dar aulas no Instituto de Educação se estenderam pelo
2º semestre de 1964 a fora, até que surgiu a oportunidade de
transferir a Celeste de Ibirá para lá; daí para a mudança foi um
passo. O novo amigo Fernando Graça veio ao meu encontro para me
dizer que havia encontrado uma casa ótima, novinha, bem localizada,
para alugar. No intervalo do almoço o Fernando me levou até a
padaria da Praça São João, onde me apresentou o Dimas, um dos
irmãos Daneluci, proprietários do estabelecimento. Num instante tudo
ficou acertado, fomos ver a casa cor de rosa, situada à rua
Tiradentes, indo para a Vila Aparecida, logo abaixo do antigo
Mercado Municipal, onde ia ser a minha casa por um bom tempo.
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Vista da fachada do Instituto de Educação
"Capitão Porfírio de Alcântara Pimentel" (E.E. de Monte
Aprazível) |
Vista aérea da Praça da Matriz de Monte
Aprazível |
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Vista parcial da Represa dos Sonhos,
atração turística de Monte Aprazível |
10 de outubro de 1964, dia dos dois aninhos de minha filha Letícia,
uma loirinha de cabelos cacheados, rosto rosado sempre mostrando um
sorriso receptivo, data de nossa mudança. O caminhão da
Transportadora Carvalho encostou em frente aquela casa, por volta
das 4 horas da tarde. Assim que o Manuelão abriu a carroceria, uma
correria de crianças, de jovens e de adultos proporcionou-me uma
cena inesquecível, todos vindo ajudar a descarregar a mudança. Meu
grande amigo Edson Guiduci, ex-aluno da faculdade, que orientou, com
sua incrível habilidade, fazer a carga dos móveis, agora orientava
na descarga, sempre fazendo suas brincadeiras e já conquistando a
simpatia dos meus novos vizinhos.
Durante a ocupação da nova casa, fui conhecendo aquela gente
acolhedora. Ali estavam a Dona Alzira, vizinha do lado de baixo, com
suas filhas Vilma e Vanda, seu filho Vivaldo, quase toda a família
do Sr. José Portilho, conhecido como Seíto; a vizinha da frente,
Dona Ita, a vizinha da esquina de cima, Dona Mércia, com seus filhos
ainda crianças, o Luís Henrique, a Leda, o Paulo, a Filomena, ainda
não tinha nascido o Carlos Alberto, era a turminha da família do Sr.
Henrique, funcionário da Coletoria Estadual; vindas mais de baixo, a
Dona Maria, esposa do alfaiate Sr. Ataliba e suas duas meninas, a
Ezilda e a Beth; os dois meninos do Sr. João Caires e Dona Deca
Junqueira, o João Luís e o Carlinhos, vieram lá da esquina de
baixo. Num instante, vi minha mudança todinha recolhida, o motorista
e os ajudantes da transportadora, o Edson e nós todos da família
ficamos encantados coma aquela gente maravilhosa. Era o auspicioso
início de uma das fases mais gostosas de nossa vida, principalmente
para a Lília, o Ricardo e a Letícia, que estavam trocando sua vida
restrita à casa e ao quintal, que tinham em Rio Preto, por aquele
pequeno e festivo mundo que se abria em sua frente. Estávamos na
nossa nova casa, na nossa nova cidade, ganhando espaço, liberdade e
tantos amigos.
Como reza o dito popular, “nada é perfeito” e aquela alegre chegada
a Monte Aprazível foi sacudida pelo fato que vou lhes contar. Estava
eu na calçada, vendo entrarem os últimos vasos de folhagens trazidos
de Rio Preto, quando vi meu amigo e colega, professor Casemiro dos
Reis Filho, fazendo-me sinais para que eu fosse até ele. No começo
eu não entendi por que ele não chegava até nós, mas logo percebi que
algo imprevisível poderia ter acontecido; esperei a família entrar
fui até ele, que me puxou para o lado e me mostrou a página do
Diário Oficial do Governo de São Paulo, na qual estava estampado o
despacho do governador Adhemar de Barros, decretando a demissão dos
professores Flávio Vespasiano Di Giorgi, Maurício Tragtemberg,
Wilson Cantoni, ele, Casemiro dos Reis Filho e Orestes Nigro, eu.
Eu acabara de me mudar para a cidade onde tinha o meu trabalho e
soube que estava desempregado. Nós, os demitidos, éramos
catedráticos da Faculdade de Filosofia de Rio Preto, que havíamos
sido demitidos de lá e, como tínhamos cargos efetivos em outras
escolas, nós os reassumimos, porque precisávamos trabalhar, porque
todos tínhamos famílias.
Não foi fácil disfarçar a tristeza, a decepção, a revolta que aquilo
me causou. Mas fingi cansaço, tomei um banho e adormeci no sofá já
instalado na sala. Na manhã seguinte agi com naturalidade, fui ao
Instituto de Educação como se ainda fosse dar aulas. A recepção que
eu tive do diretor Gino Papa, que me apertou contra o peito e me
deixou ouvir seus soluços, da assistente de direção, Ruth Ceneviva,
que me deu a mão e me olhou longamente em silêncio solidário, dos
demais colegas que um a um me abraçaram, aquilo foi o bálsamo
sagrado que me tirou do fosso e me elevou ao ceu. Os alunos ainda
não sabiam da minha demissão, por isto Dona Ruth me acompanhou às
salas de aula uma a uma e falou aos alunos sobre “a grande injustiça
que fizeram com este professor que vocês tanto estimam”. A comoção
tomou conta de todos. Uma aluninha se aproximou de mim com seu
caderno aberto numa página em branco, e me pediu que ali escrevesse
uma mensagem de despedida, eu atendi e a fila se formou. Precisei
ficar a postos atrás de um balcãozinho colocado ao pé da grande
escadaria e escrever mensagens a todos os alunos, os da manhã que já
estavam dispensados e os da tarde que já iam chegando. Este episódio
inesquecível tem inúmeras testemunhas aí na cidade, pois eram
aluninhos e devem estar vivos para confirmar este grande momento de
minha vida.
Na próxima crônica vou dar outros importantes testemunhos dos atos
de espontânea solidariedade que recebi da gente desta terra que está
cravada no fundo de meu coração. |