Era tão quente
quanto agora a nossa Itápolis dos velhos tempos, talvez até mais
quente, pois me lembro de quando, olhando ao longe, nossa vista
se turvava levemente com o vapor que saía da terra. Terra que
soltava poeira, poeira que fazia parte de nossa paisagem, que
tornava o céu avermelhado do lado donde se anunciava o temporal
que nos ameaçava. Poeira que era levantada pelo vento da
ventania que anunciava a chuva brava. Poeira que avermelhava o
céu se subia das estradas, que amarelava o ar se subia das
pedreiras da pedra-de-fogo, nosso solo e sub-solo, nosso nome de
batismo.
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Nada impedia que os estudantes usassem suas fardas
cáquis e suas saias e blusas que lhes cobriam e
escondiam as formas |
Era tão quente
quanto agora a nossa Itápolis dos velhos tempos, talvez até mais
quente, pois me lembro de quando, olhando ao longe, nossa vista
se turvava levemente com o vapor que saía da terra. Terra que
soltava poeira, poeira que fazia parte de nossa paisagem, que
tornava o céu avermelhado do lado donde se anunciava o temporal
que nos ameaçava. Poeira que era levantada pelo vento da
ventania que anunciava a chuva brava. Poeira que avermelhava o
céu se subia das estradas, que amarelava o ar se subia das
pedreiras da pedra-de-fogo, nosso solo e sub-solo, nosso nome de
batismo. Éramos perfeitamente adaptados ao calor forte e ao
poeirão, tanto que nem o pó que avermelhava nossos colarinhos,
nem o calor que molhava as costas de nossas camisas, nada disto
impedia que vestíssemos terno para irmos à missa, nem que as
mulheres vestissem suas roupas fechadas, garantia de seu recato,
e nem que os estudantes usassem suas fardas cáquis e suas saias
e blusas que lhes cobriam e escondiam as formas.
Era outra a
paisagem física da cidade, com suas ruas poeirentas ou
barrentas, conforme o clima, era outra também a paisagem humana,
com toda gente vestida de modo recatado, fossem os ternos dos
funcionários públicos, dos advogados, dos cartorários, dos
bancários, fossem os uniformes dos operários, dos motoristas de
praça, dos guardas noturnos, fossem os hábitos fechados das
irmãs de caridade, as batinas dos frades e dos padres, a manga
de camisa dos transeuntes comuns. Não se viam bermudas,
bermudões, shorts, a não ser em raros eventos esportivos.
A roupa que nos
vestia nem sempre revelava nossa condição social. O pobre também
se vestia com trajes completos, conforme a ocasião. As roupas de
então estavam ao alcance de todos, pois eram feitas por
alfaiates e costureiras para quem podia pagar, e pela dona de
casa, aquela mãe prestimosa, aquela irmã mais velha que todas
sabiam costurar. Não havia lojas de confecções, não havia
butiques, havia sim lojas de matéria prima para se fazerem as
roupas, as lojas de tecidos, as lojas de armarinhos. A máquina
de costura era coisa tão familiar que havia lojas e
representantes das diversas marcas que vinham morar na cidade
para promover a venda delas. A gente chamava esses profissionais
de “gerentes” O “gerente” da Sínger, o “gerente” da Pfaff, o
“gerente” da Vigorelli, o “gerente” da Elgin. Era raríssima a
casa onde você entrava, que não ostentasse a sua máquina de
costura.
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Vigorelli, Singer e Pfaff, as 3 marcas de máquina de
costura mais famosas e vendidas, na época |
As roupas das
crianças eram bem ao estilo da infância, com seus pompons, seus
laços e lacinhos, suas formas balonês, suas cores vivas; já na
idade escolar as roupinhas ficavam mais sóbrias na forma e nas
cores e a calça curta acompanhava os meninos até os treze,
catorze anos de idade. Os vestidos e as saias das meninas
cobriam suas pernas até metade das canelas e era raro que se
lhes vissem os joelhos.
Os acessórios
também eram típicos daqueles tempos. Desde mocinhos, quando
passavam a usar calças compridas, os homens aderiam ao uso do
chapéu, alguns imigrantes, quando europeus, exibiam os bonés
munidos de pequena aba dianteira, geralmente xadrezes, na
tonalidade cinza ou marrom. A gente sabia que nas capitais as
mulheres costumavam ostentar lindos chapéus, mas isto raramente
sucedia nas cidades interioranas e Itápolis não fugia à regra. O
que havia era uma profusão de sombrinhas feitas de tecidos
nobres, como linho, morim, setim, lese, cambraia; algumas
exibiam apliques de flores ou pequenas figuras temáticas, sempre
muito delicadas, que embelezavam suas portadoras. Os homens
exibiam seus guarda-chuvas com cabos variados, alguns de prata,
outros de madrepérola, de madeira torneada. Além de sua
utilidade prática, sombrinhas e guarda-chuvas serviam de
adereços, eram complementos do vestuário, davam um ar de
elegância a quem sabia usá-los.
Falo aqui de uma
época que ainda não conhecia a calamidade do plástico, o sabor
insosso dos “fast-foods”, o comer de pé, o vício dos
refrigerantes, a praga dos pardais, este bichinho feio, sem
trinado, que só voa raso e que destrói plantações, porque anda
em bando. Época em que o asfalto não impermeabilizava a terra,
em que remédio era pra curar doenças e não para deixar “doidão”,
em que arma de fogo era assunto de policial ou de soldado.
Era outra a
paisagem humana, porque eram outros os costumes dos homens e das
mulheres. As roupas e acessórios vestiam e adornavam seres
avessos à violência, que enfrentavam as vicissitudes de cara
limpa e lúcida, que não buscavam se afirmar pela ostentação,
pela opulência. Roupa sóbria em gente pacífica, adereços
esculpidos para almas brandas.
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