Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

“O sonhado ingresso na Universidade. Como era a USP dos anos 50”

Quem vê hoje nosso país com faculdades de todo tipo, espalhadas nas capitais e no interior dos estados, quem vê hoje o ensino superior instalado até em cidades pequenas, como acontece no Estado de São Paulo, não faz idéia de como era a Universidade brasileira até os anos 60, período anterior à instalação do regime militar imposto à Nação em 1964. 

Para que pudesse ostentar o nome de Universidade, essa instituição devia agrupar um número significativo de Faculdades, partindo de um núcleo básico que era a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, sem ela não se concebia a Universidade. A mais completa Universidade brasileira era a USP, fundada em 1934, durante o governo estadual de Armando Salles de Oliveira.

A Universidade de São Paulo surgiu embalando o sonho de construir a Cidade Universitária, mas ainda em 1952, quando nela ingressei, tinha suas unidades espalhadas pela capital paulista e a Cidade Universitária era uma várzea pantanosa na margem esquerda do Rio Pinheiros. A Faculdade de Filosofia, seu núcleo, funcionava quase toda em dois prédios da Rua Maria Antônia, no bairro da Vila Buarque, encravada entre Higienópolis, Santa Cecília, Consolação e Centro Novo. Dali se podia alcançar o centro da cidade a pé. Os Cursos de Química e História Natural funcionavam num palacete situado na esquina da Alameda Glete com a Rua Guaianazes, vizinho do Palácio dos Campos Elíseos, antiga sede do governo paulista.

As Faculdades de Direito, Medicina, Veterinária, Engenharia, Odontologia e Farmácia, tanto a de São Paulo como a de Araraquara, já existiam antes da fundação da USP em 1934, mas não formavam um conjunto universitário; A Escola Politécnica (de Engenharia) e de Odonto0logia e Farmácia  funcionavam na Rua Tres Rios e numa praça do Bairro do Bom Retiro.

A Faculdade de Direito funcionava no Centro Velho da cidade, no Largo de São Francisco, num prédio que, pela sua arquitetura, ganhou o nome de Arcadas. A Faculdade de Medicina e a Faculdade de Higiene funcionavam num conjunto de prédios de alto estilo, na Avenida  Dr. Arnaldo, no bairro de Pinheiros. Com a fundação da universidade, em 1934, essas Faculdades foram agregadas à USP.

A USP teve seu sistema, sua composição, seus ideais de ensino concebidos sob inspiração da universidade francesa, seu primeiro corpo docente quase todo se compunha de mestres europeus, portugueses, franceses, italianos, espanhóis, suíços, alemães e ingleses. Em 1952, ano de meu ingresso, já quase há vinte anos de sua fundação, esta hegemonia ainda era marcante.

São Paulo de minha época ainda era a “terra da garoa”, chovia muito e fazia frio na maior parte do ano, por isso as vestimentas eram pesadas, marcadas pelo formalismo dos ternos, dos chapéus, pela sobriedade do cinza e do azul marinho. Os mestres circulavam pelos corredores e saguões ostentando seus trajes oficiais, formais, imponentes. As salas de aula tinham um tablado que destacava o professor e seu assistente. A maioria dos professores se expressava com o formalismo das conferências e as classes mais antigas os tratavam por “Vossa Excelência” e cultivavam o hábito de aplaudi-los com salvas de palmas ao fim de suas explanações.

Com raras exceções, os velhos mestres guardavam uma distância bem sensível de seus alunos, em certos casos isso causava até constrangimento. Vários deles costumavam se furtar ao contato com seus  discípulos, delegando ao seu assistente a tarefa de atendê-los, como seus intercessores.

Os calouros chegavam às Faculdades alimentando a expectativa de ali encontrarem aqueles que conheciam como autores dos livros do ginásio e do colégio. Quem entrava no curso de Geografia, como o Élio  Renesto, chegava ansioso pela primeira aula do autor de seu livro do ginásio, Geografia Geral, o professor Haroldo de Azevedo, já o que entrava no Curso de História, tinha encontro marcado com o Professor Joaquim Silva, autor dos livros História Geral e História do Brasil. A minha expectativa maior eram as primeiras aulas de Língua e Filologia Portuguesa, com aquele que era meu “livro de português”, o Professor Francisco da Silveira Bueno.

Esses sonhos, que vinham se formando desde o Colegial do “Valentim Gentil”, nem sempre se confirmavam, pois muitas de nossas aulas eram dadas por assistentes nunca antes mencionados. E aquela certeza que tínhamos de que iríamos usufruir de um manancial de cultura e saber inigualáveis, às vezes se estilhaçava diante de aulas medíocres, indignas do nosso antigo curso ginasial.

O exemplo mais decepcionante e que nunca me sai da lembrança, eram as aulas de língua portuguesa, ministradas por um dos assistentes do Professor Silveira Bueno, geralmente as primeiras aulas do período noturno. Ela era de uma insegurança quase que doentia, percebia-se desde a primeira aula do curso, que ela havia decorado tudo que falava, tanto que, quando a porta se abria e o bedel, Sr. Alcebíades, anunciava um aluno retardatário, ela ficava paralisada, engolia seco e, passado o transtorno causado pelo recém chegado, retomava a “decoreba” desde seu início, numa repetição patética, deixando-nos, seus alunos, perplexos.

Os alunos da USP, cantada em prosa e em verso, podiam se orgulhar muito de suas Faculdades, tínhamos aulas primorosas, palestras de altíssimo nível, mas tínhamos que engolir muitos batráquios. Como disse o Pequeno Príncipe, “Se você quer curtir as borboletas, antes tem que saber encarar as larvas”.