Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

"Meu tipo inesquecível"

Quando eu era leitor assíduo de “Seleções”, uma das seções que mais me atraíam era “Meu tipo inesquecível”, uma crônica que descrevia certos personagens que tinham peculiaridades ou atitudes atípicas que as marcaram para aqueles que com eles conviveram. Acho que todos nós temos nosso “tipo inesquecível”, aguce sua memória e você vai lembrar de algum ou de alguns deles.

Da minha infância lembro bem do primo João Sene, do Cocada, guarda noturno do Posto Atlantic, do Armentano; da Dona Mazé, que deve ser um dos tipos inesquecíveis de muitos ex-coleguinhas. De minha adolescência, o que guardei bem na memória foi a figura ímpar do Zezé Celi, que mereceu uma crônica já nas minhas primeiras publicações. São muitas as pessoas, que pelo seu modo peculiar de ser e de agir, fazem eterna morada em nossa memória.

Na minha adolescência e juventude passadas na minha terra natal, uma figura, dentre outras, perpetuou-se em minhas lembranças. Ele se chamava Vitor João Basílio, veio viver em Itápolis para realizar seus estudos no ginásio e no colegial. Veio de Ibitinga que era perto, dava pra ir passar pelo menos o fim de semana lá, mas o Vítor não ia, preferia ficar e curtir o domingo na nossa Itápolis.

É bom que nos lembremos que, naquele tempo, anos 40 e 50, só se tinha folga aos domingos, o sábado também era dia útil, ainda não conhecíamos a tal de “semana inglesa”, que já se praticava nos grandes centros. 

José Sene Geraldo Hauers Teodósius Chammas João Alexandrino

Nosso grupo de colegas “sempre juntos” era razoável, nele estavam o José Sene, que já era fotógrafo, o Onivaldo Micheletti, o Geraldo Hauers, futuro comediante Geraldo Alves, o Teodósius Chammas, o Henrique Segundo Zabini, o Dega (Edgar Garnier), o Geraldo Antonio Gentile, o João Alexandrino, às vezes o Albertoni, o Carlito, primo do Dega. E a este grupo logo se juntou o Vítor.

O forte do Vítor era seu canto romântico, cantava como um grande profissional, com uma voz e uma afinação admiráveis. Tornou-se logo o membro-mor de nossas serenatas. Sem o Vítor Basílio, não tinha graça. Nos nossos 17, 18 anos, os ídolos da música popular ainda eram os ídolos de nossos pais. Compositores e cantores que já gravaram em 1930, 32, 33, anos em que havíamos nascido, continuavam pontificando no rádio e nos serviços de alto falantes.

Carlos Galhardo

Orlando Silva

Sílvio Caldas

Carlos Galhardo, a voz de veludo,  Sílvio Caldas, o Caboclinho querido, Francisco Alves, o Rei da Voz,  Gilberto Alves, o Samba em pessoa e o super popular Orlando Silva, o Cantor das multidões. A voz do Vítor Basílio era muito parecida com a do Orlando Silva. As canções que entravam nas nossas serestas eram na maioria sucessos dele, logo atrás vinham os sucessos de Sílvio Caldas e quando a serenata era para as mamães e as vovós, aí entravam os sucessos do Carlos Galhardo. Durante os nossos últimos anos de estudantes em Itápolis, pudemos viver o encantamento das serenatas marcadas pela voz romântica de nosso cantor, Vítor Basílio.

Vítor se afeiçoou de tal forma a Itápolis, que a gente até esquecia que ele vinha de nossa rival mais vizinha. Durante algum tempo Vítor foi morar na minha casa, no meu quarto e isto valeu inúmeras serestas ao meu pessoal. Com ele aprendi acompanhar melhor ao violão aquelas canções cheias de floreios e de semitons, pois o Vítor tinha um ouvido aguçado e exigia que a gente atingisse o tom perfeito no instrumento.

Em 1952, fomos quase todos embora, estudar fora. E nossa turma foi boa parte para São Paulo. Fomos morar juntos na Pensão da Dona Patrocínia, no nº 358 da Rua Maria Antônia. A nós juntaram-se o Naurzinho Janzantti, o José Carlos Próspero, o Élio (assim mesmo) Renesto, o Antoninho Pereira.

O Baianinho (Geraldo Hauers) começava sua via sacra nas rádios em busca de um lugar ao sol, sempre sonhou ser artista. Um dia ia à Rádio Record, lá no Largo da Misericórdia, em plena Rua Direita; noutro dia ia à Rádio Tupi, lá no Sumaré, no outro ia à Rádio São Paulo, na Avenida Angélica, no dia seguinte, na Rádio América, noutro na Rádio Cruzeiro do Sul, até conseguir uma ponta nas novelas da Rádio São Paulo, imitando ruídos e  vozes de animais. O sonho do Baianinho era ser cômico. Mas, lá na pensão que matava a gente de rir, era o Vítor Basílio. Ali ele revelou seu dom de comicidade. O Baianinho fazia rir pelas suas imitações engraçadas, o Vítor fazia rir pelas tiradas que ele dava conforme as coisas aconteciam.

Só vou contar uma delas! O Baianinho era especialista em tirar sarro dos colegas e amigos, apelidava todo mundo. E apelidou o Vítor de Gunga Din, nome dado a um personagem do filme do mesmo nome, vivido pelo ator Sam Jaffe. Gunga Din era corcunda e o Vítor tinha uma leve corcunda também. O Baianinho já entrava no quarto chamando a gente pelo apelido. Eu, ele chamava de Pré-histórico; o Élio Renesto, de Doutor Infesulino; o Zé Próspero, de Zé Triplex e assim por diante.

Uma tarde ele chegou, viu o Vítor sentado numa das camas e começou: -“Gunga Din, você já chegou? Gunga Din?” O Vítor olhou pra nós com cara de assustado e começou: -“Gente! Vocês ouviram? Gente, eu ouvi uma voz” o Baianinho insistia: -“Gunga Din, como você tá mais feio ainda, Gunga Din!” e o Vítor: -“Gente, olha uma gravata andando! Escutem a voz de novo!” E logo resolveu o mistério: -“Ah, que susto! É o invisível, como é, Baianinho, já vai ser galã de novela?”

O Baianinho era Hauers, filho e neto de alemães, não tinha barba nem bigode, seus cabelos, sobrancelhas, cílios, terno, gravata, eram todos brancos como a neve. Entende-se então o “invisível!”. 

O Vítor formou-se dentista, foi trabalhar em Trabiju, cidade que foi estação da Douradense. Lá fez sua vida. Nós todos, daquela pensão tão alegre, fomos cada um viver sua vida, uns longe dos outros. Em 1996, eu fui a Ibitinga experimentar um terno para o casamento do meu sobrinho Vicente com a Kellen. O alfaiate era um simpático senhor já entrado em anos. Falei pra ele do Vítor João Basílio, que morava na rua da Estação, perguntei se tinha notícias dele.

Ele engoliu seco, ficou silente alguns segundos, fixou os olhos nos meus e respondeu: -“O Vítor foi enterrado ontem, aqui no nosso cemitério! Acompanhei o enterro, éramos amigos!” Cheguei tarde demais. Mas, eu nunca me esqueci, nem nunca irei me esquecer do Vítor.