Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

"Meu tributo a um amigo de infância: os Zabini"

Desde que sentei no primeiro banco escolar, um menino moreninho, de ar sério, compenetrado nas aulas, esteve sentado ao meu lado. E foi assim até o terceiro colegial, quando tínhamos já nossos quase vinte anos. Se fosse só ali que eu o encontrava, não teria muita coisa para contar aqui. Acontece que aquela coincidência nos levou à uma estreita amizade que se estendeu até os anos de universidade.

Aquele garotinho atento e responsável chamava-se Enrique Segundo Zabini.

- “Por que Enrique sem H?”, perguntou-lhe Dona Linah Gianotti, nossa professora. - - - “Porque meu pai quis por o nome do pai dele, meu avô que era italiano”, respondeu ele, de pronto.

- “E por que Segundo?”, perguntei eu.

- “Porque meu irmãozinho mais velho, nascido antes de mim, chamava-se Enrique, mas morreu ainda nenezinho”, explicou ele.

Aquele diálogo, naquela classe do nosso Grupo Escolar (o Antonio Morais Barros), fez brotar em mim uma grande admiração pelo meu coleguinha de carteira. Eu já o observava com interesse pelo seu jeito responsável, mas aquela cabecinha consciente, revelada naquelas respostas prontas, concisas, me cativaram. Acho que é por isso que eu sempre tratei o “Zabini” com respeito, nunca fiz com ele certas brincadeiras sarristas que costumava fazer com outros colegas e amigos.

Ele era diferente dos outros meninos. Era um pouco pão-durinho, é verdade. Lembro-me que, uma vez, tendo esquecido de levar apontador ou mesmo uma gilete, virei-me pra ele e pedi:

- ”Zabini,  me empresta uma gilete?” E jamais esqueci da sua bizarra resposta, tirando uma gilete de dentro de uma caixinha:

- “Taqui, olha! Mas, devolva hem, eu tenho só catorze!”  Eu olhei pra ele, ele olhou pra mim e caímos na risada.

Nossa amizade cresceu com o tempo, logo passamos a frequentar nossas casas, ele ia na minha, eu ia na dele, lá na Avenida 7 de Setembro, bem em frente da Máquina de Café do Sr. Salim Ferreira Haddad. Era um chalé muito bonito, com uma escada que levava a uma varanda gostosa, cheia de plantas que a Dona Theresa cultivava com carinho. Do lado esquerdo, na esquina, era a casa do Sr. Mássimo Massari, amigo íntimo de meu pai que tinha um casal de filhos, o Adão e a Eva, fato que nos impressionava, pois eu e o Zabini éramos membros dos Cruzados, congregação católica que nos ensinava passagens da Bíblia (mais tarde fomos companheiros de Congregação Mariana).  

Do lado esquerdo da casa dos Zabini estava o prédio da Escola de Aplicação,  onde os professores da Escola Normal Valentim Gentil davam aulas de didática e promoviam treinamento em estágios para os futuros professores. Na outra esquina vivia a família Del Guércio, onde viviam as irmãzinhas Schöber, netas do Sr. Salvador, a Arlete, a Marli, a Rosália e a Elfrida tinham este sobrenome porque o pai delas era alemão. Na casa do Zabini juntava toda esta turminha do bairro para fazer trabalhos escolares e para brincar, eu era o único que vinha de longe.

Os pais do Enrique eram a dona Theresa, Zelli em solteira e o Sr. Archimedes (hoje escrito Arquimedes). Ele era funcionário público e trabalhou até aposentar-se, na Coletoria Federal. Era um homem muito responsável, cidadão de respeito, vestia-se sempre com o rigor da época, principalmente quando ia para o trabalho. Dona Theresa era a dona de casa típica daqueles tempos, cuidava de tudo e cozinhava muito bem. O casal Zabini tinha seis filhos, bem distribuídos, três homens e três mulheres. Lembro-me de todos como se os estivesse vendo.

A Maria era a mais agarrada com a Dona Theresa, a Adelcisa, todos chamavam de Delcisa, era a mais extrovertida, tinha muitas amigas; a Nahir era uma moça alegre, comunicativa e sua qualidade mais marcante era sua beleza. Todos ali eram bonitos, mas a Nahir era especial: clara, pele rosada, cabelos castanho-claro levemente ondulados, uma criatura esculpida por Deus.

O Enrique era o mais velho dos meninos, era muito estudioso e colaborava bastante com sua mãe, indo às compras pra ela e vigiando os passos dos mais novos, o Maurílio e o Álvaro, na verdade tarefa fácil, pois todos naquela família eram ajuizados, ótimos alunos na escola, enfim, ótimos filhos.

A vida de cada um seguiu seu caminho natural. Todos nós crescemos, viramos jovens adolescentes, os meninos vestiram calças compridas, as meninas passaram a usar batom, ruge, frequentar salão de beleza, começamos todos a ir ao “footing”, que a gente fala “fut”, vieram os flertes, os primeiros namoros, estávamos virando “gente”.

A casa do Sr. Archimedes, aos sábados à noitinha, virava uma festa... eram os namorados das moças que iam buscá-las para o cinema, para a brincadeira dançante no Clube, para a festa de aniversário de alguém. Quantas vezes, quando passei por lá para sair com o Enrique, encontrei na varanda o Ebem Gualtieri, que mais tarde casou-se com a Maria, o Luís Bertoco, que já era o noivo da Adelcisa e o  Mario Manicardi, namorado da Nahir !!!

E lá iam eles,  alegres, falantes, naqueles sábados felizes. Você vai perguntar "e os “meninos” ? Os meninos demoraram para começar os namoros e é preciso lembrar que as namoradas daquele tempo não frequentavam a casa dos namorados, mas de jeito nenhum. Os namorados, esses  podiam até ir chegando, devagar, mas sem intimidades, nada de ir entrando pela sala a dentro, a varanda era a fronteira. O Enrique era muito paquerado, tinha estampa e seu bigode preto e encorpado valeu-lhe o apelido de “Bigodinho do Tyrone”, referência ao grande galão do cinema da época, Tyrone Power.

Sempre juntos, sempre caindo na mesma classe, no ginásio, no colégio, Enrique e eu nos formamos, em Itápolis,  em 1951. Agora cada um teria que ir para um lado? Não para nós dois. Eu fui primeiro para São Paulo, o Enrique foi depois. Cada um foi para um lado, no começo. Mas logo recebi um telefonema convidando-me para ocupar uma vaga na pensão da Dona Patrocínia, lá na Rua Maria Antonia, 358, pertinho da minha Faculdade.

Era o Enrique, filho do Sr. Archimedes,  que tinha reservado uma vaga no seu quarto, junto como Naurzinho Janzantti, filho do Sr. Pedrinho. Fui correndo. Mais tarde para lá foram também os itapolitanos Baianinho Geraldo Hauers, filho do Sr. Nenê Baiano (Frederico Hauers),   Élio Renesto, filho do Sr. Vitório, o José Carlos Próspero, filho do Sr. Olympio, o Toninho Pereira, filho do Sr. Adelino, o Alcides Cacini, filho do  Sr. Vicente.

Aquela pensão, onde recebíamos café da manhã, almoço e janta, roupa passada e lavada, serviço de camareira, tudo por tão pouco, que do que ganhávamos sobrava dinheiro para os livros, para o cinema, para comprar passagem de trem pra ir pra Itápolis. Foram anos felizes para todos nós. A casa foi vendida para a construção de um prédio, tínhamos que sair. Cada um foi para um lado, aí sim, pois naquela altura estavam todos estudando em faculdades diferentes. E a dupla Enrique-Orestes finalmente teve fim.

Logo me formei, fui embora de São Paulo, o Enrique formou-se dentista, casou-se com a Sila (Maria Orcills Gabarra), também dentista, montou residência e consultório na Avenida Conceição, da Vila Guilherme, tiveram os filhos Glória Maria, viúva, minha amiga no Facebook,  Ana Teresa e Henrique Arquimedes.

O Maurílio e o Álvaro, assim como a Maria Palmira, vivem na zona norte da Capital. Adelcisa e seu marido já faleceram, assim como a Nahir. Se o Sr. Archimedes e Dona Theresa estivessem vivos, estariam curtindo netos e bisnetos levando-os para brincar no seu sítio, onde o Sr. Archimedes cultivou os primeiros coqueiros da Bahia do município de Itápolis. Mas eles não estão mais entre nós, o simpático chalé da 7 de Setembro teve sua fachada alterada e as lembranças vieram fazer morada em nosso coração, pois meu companheiro de banco escolar nos deixou muito cedo. Amanhã, 22 de setembro de 2014, estará fazendo vinte e nove anos de sua morte tão moço, devia estar com seus cinquenta e dois anos de idade. Sila ficou entre nós um pouco mais, faleceu em 2006.