Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

"Espontaneidade e saúde social"

Nessa era em que vivemos, na verdade, de uns anos pra cá, jogaram fora o lema dos anos 80 “É proibido proibir” e hoje passaram a nos inibir de fazer e até de dizer uma porção de coisas que eram corriqueiras, naturais, espontâneas, na maior parte delas ingênuas, isentas de maldade, de preconceitos, de más intenções. Passou-se a se ter um patrulhamento em cima do cidadão, cerceando-lhe a expressão natural e espontânea, sob vários pretextos. Por outro  lado grassa a permissividade em atos, palavras, exibições de todo tipo, derrubados que foram os limites da sobriedade, as fronteiras do recato e da decência, as regras da conduta em sociedade e na atuação política.

Desculpem-me os leitores que se identificam com tais mudanças, mas eu e muita gente, muita mesmo, não conseguimos nos sentir à vontade neste cenário. Somos do tempo em que chamar uma criatura íntima e querida de “neguinha”, era manifestação de achego e de carinho; tempo em que as pessoas tinham recato e que pra elas sexo era questão de intimidade, de entre quatro paredes; tempo em que um puxão de orelha, um tapinha na bunda ajudava a amoldar uma criança, que ia assim se desenvolver respeitosa, educada, ciente de que tudo, no convívio, com limites.

Somos, eu e uma imensidão de pessoas, do tempo em que se podia chamar alguém pelo apelido, chamar o gordo de gordo, a magra de magra, que isto não causava nenhum mal estar, nenhum drama, nenhum complexo, ninguém se sentia discriminado por isto. Brigar na saída do grupo escolar era parte do folclore infantil. Havia até um ritual para dar mais emoção a essas brigas.

Depois de "pular o risco" é que a briga começava pra valer

Pra começar, brigar, pelo menos uma vez durante o curso primário, era obrigatório para os meninos, se não quisessem ser chamados de “mariquinhas”. O jeito era escolher já durante a aula o adversário, apontar pra ele o muque, que era a forma de desafiá-lo para a briga. Logo a notícia se espalhava na classe e no recreio, “Gente, vai ter briga na saída, Fulano contra Beltrano!”. O anúncio já estimulava a formação de torcidas. Batia o sinal do fim da aula, era um alvoroço pra pegar bom lugar pra ver a briga. A refrega começava tímida, um encarando o outro, de longe, com cara de enfezado e ficava nesse chove-não-molha até que um dos expectadores fazia com um giz, já trazido da sala de aula pra isto mesmo, um risco no chão e sentenciava: “Quem pular este risco é mais valente!” É claro que os dois rivais de plantão pulavam no mesmo instante. Logo alguém, querendo ver o circo pegar fogo, gritava: “Quem for mais forte dá um soco no outro!” Aí a briga começava, com socos, empurrões, agarrões pelos cabelos, trança-pés; as torcidas deliravam e a contenda só terminava quando aparecia a turma do “deixa disso”, que apartava os briguentos e cada um ia pra sua casa.

Geralmente não havia vencedores e os dois, no dia seguinte, contavam vantagem, proclamando-se o campeão. E, olhem, em pouco tempo os dois “inimigos” faziam as pazes. Nunca soube de nenhum dano sério nessas brigas, ninguém se feria, o máximo eram algumas esfoladas que um pouquinho de mercúrio cromo logo curava.

Era um tempo em que os pais não tinham constrangimento em coibir as travessuras dos filhos, de impedir que se comportassem mal diante de visitas e de estranhos. Aliás, uma sábia medida era tomada: se a conversa era entre adultos, o assunto era sério, criança ficava fora, se insistisse em ficar por perto para bisbilhotar, logo levava um corretivo.

Meus quatro filhos foram criados assim e nenhum deles ficou complexado; o que resultou deste tipo de educação foi uma turminha de meninos, de moços e de adultos tão respeitosos e educados que são motivo de grande orgulho para a família. Meus filhos brigaram quando crianças; levaram suas palmadinhas, devem ter tido apelidos na escola e nada disso impediu-os de serem sociáveis, queridos nos seus respectivos grupos de convívio.

O que é preciso proibir é a má conduta, é o uso da má fé, do cinismo, da desonestidade. O que é intolerável é o abuso! Abuso da confiança, abuso da liberdade, abuso do poder e abuso do deboche. Vamos recobrar a alegria típica do brasileiro! Parem de patrulhar as pessoas, exigindo-lhes padrões de comportamento criados de forma artificial pelo oportunismo profissional de psicólogos, sociólogos, formadores de opinião formados em cursos vagos, que “ouviram cantar o galo” e passaram a posar de guias do pensamento moderno! Vamos voltar a ser espontâneos, alegres e felizes. Para isso é bom que parem de patrulhar a nossa fala, o nosso modo de nos expressar. Do contrário, logo os professores vão ter que chamar a lousa de “quadro-afrodescendente”!