Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

"Tributo aos Mestres"

Sinto que preciso dar meu depoimento, como profissional do ensino que fui durante quase cinquenta anos de minha vida, fazendo uma comparação cuidadosa entre o ensino oficial dos anos que antecederam à década de 70 e a escola pública de nossos dias. Se tomarmos a nossa tradicional E.E.P.S.G. "Valentim Gentil" como parâmetro do desenvolvimento pedagógico de toda uma era da vida itapolitana e de todo o Estado de São Paulo, poderemos sintetizar, na história desta escola, todo o processo desta evolução.

Nossa principal casa de ensino teve seu ponto de partida no ano de 1929, véspera dos revolucionários anos 30, que marcaram enorme mudanças na vida institucional e no pensamento do Brasil. Tínhamos então o Grupo Escolar "Antônio Morais Barros", que recebia as crianças dos 7 anos em diante e lhes dava as primeiras instruções sobre linguagem, alfabetizando-as, cuidando de sua caligrafia, levando-as a conhecer o valor e os prazeres da leitura; além disso, o Grupo Escolar introduzia as crianças no universo das ciências, da história, da geografia e da aritmética. Depois de quatro anos, em regra, acontecia a primeira formatura dessas crianças, com direito a respeitáveis solenidades, muito concorridas, todos os participantes em roupas de gala, com paraninfo, patronos, oradores adultos, orador dos formandos, todas as autoridades da cidade presentes.

As formaturas do Grupo Escolar eram um dos pontos altos da atividade cívica da cidade, isso porque o ensino público era olhado com grande respeito e também porque, para grande parte dos formandos, era o fim dos estudos, nem todos iriam prosseguir neles.

Com a instalação de nosso Ginásio, deu-se início a uma busca acentuada do aprimoramento nos estudos, pois já se podia continuá-los sem se deslocar para um grande centro. No início, até o começo de 1950 o Município era o encarregado de prover e de administrar a nova instituição. Também, depois de formar a primeira turma de "quintoanistas" (o Ginásio tinha da 1ª à 5ª série), instalou-se a nossa Escola Normal, destinada à formação dos profissionais de ensino fundamental, os professores primários, com duração de três anos. Só por volta do ano de 1947 é que a instituição Ginásio Estadual e Escola Normal de Itápolis foi estadualizada.

Se no Grupo Escolar os alunos eram conduzidos por um único professor durante cada ano de estudos, no Ginásio este encargo já se dividia entre as diversas disciplinas, naqueles tempos chamadas de "matérias". O aluno passava de um regime para outro, começando a receber lições distribuídas entre vários professores, em aulas que duravam 50 minutos. Desaparecia assim a figura daquela professora guia, quase uma mãe, que ensinava todas as matérias, além de reforçar aos seus discípulos os princípios básicos da boa conduta, que eram dados pelos pais. Agora, no Ginásio, o professor era um especialista, que não tinha tempo de ensinar princípios a não ser pelo exemplo de sua conduta pessoal.

Agora vejam quais eram as matérias no Ginásio dos anos 30. Além do Português, do Latim, da Matemática, da História Geral e do Brasil, da Geografia, das Ciências Naturais, do Francês, do Desenho, do Canto Orfeônico, da Educação Física, dos Trabalhos Manuais para os homens e das Prendas Domésticas para as mulheres, matérias essas que prosseguiram no Ginásio de depois da reforma de 1941, dizia eu, o ginasiano dos anos 30 recebia aulas de Física e de Química, podendo ainda optar por mais uma língua, entre o Alemão, o Italiano e o Grego. O Inglês só passou a figurar na grade curricular depois da reforma e, assim mesmo, só a partir da 2ª série. Este era o nível das matérias que esculpiam o futuro "bacharel", como era intitulado quem se formava no Ginasial e no Colegial. Além deste manancial de especialidades, é necessário que se diga que o corpo docente que se encarregava delas era escolhido a dedo e o elevado grau de exigência habituava o aluno a levar muito a sério seus estudos.

Desde criança pude testemunhar o peso que o estudante carregava, por ser aluno de nossa principal instituição de ensino. Minha mãe tinha vários pensionistas ginasianos e várias normalistas: a gente podia ver o afinco com que se dedicavam aos cadernos e livros nas semanas de provas. Alice Guimarães, de Novo Horizonte, Olinda Xavier, de Tabatinga, passavam horas debruçadas nos livros ou lendo em voz alta os textos de Pedagogia, Psicologia, Biologia, Administração Escolar, que eram as matérias fundamentais da Escola Normal. Os moços do Ginásio, todos ibitinguenses, Mauro e Damásio Deri, primos, Vidal e Cícero Haddad, também primos, Leontino Arantes, Sílvio Tozzi, Deolindo Souza disputavam espaço na grande mesa da varanda dos fundos, para seus exercícios escolares e, nas épocas de provas ou exames, era um silêncio notável que vinha da atenção aos livros que os entretinham.

O Prof. Renato Stempniewski, co-autor dos livros,  lecionou Geografia no "Valentim Gentil", onde fui seu aluno nos anos de 1945 e 1946

Quando, nos anos 40 o Ginásio recompôs sua grade de disciplinas com a instalação do Colegial, que se dividia em Curso Clássico, voltado para o estudos das "humanas" e Curso Científico, voltado para as "exatas", o nível de ensino e de rigor continuou o mesmo. Só para ilustrar tudo o que estou afirmando, vou-me ater à minha época de ginasial e colegial, dizendo que a minha turma teve uma formação privilegiada, com as aulas de Ciências do Professor Meri Minhoto, com as aulas magistrais de Português, do Professor Aureliano Castelar de Franceschi, com as aulas vibrantes de História, dadas pelo Dr. Arnaldo Maradei; tivemos como professor de Geografia, o mestre, autor de livros especializados na matéria, Professor Renato Stempnievsky e mais tarde a Professora Geniva Keese. Na Matemática tivemos professores de nível universitário, como o Dr. Marão, a Professora Nely Lutaif, o Professor Renato Brunelli, o Latim era ministrado por um doutor na matéria, o Professor Abelardo, seguido mais adiante pelo Professor Henrique Morato, e o que dizer então, dos professores que nos ensinavam as línguas estrangeiras?

Prof. Aureliano Castelar de Franceschi Prof. Arnaldo Maradei Prof. Nely Lutaif

Prof. Antonio Marão Profª Dalva Nery Caivano Prof. Renato Brunelli, falecido num acidente aéreo

O Inglês tinha como mestre o excêntrico, carismático, simpaticíssimo e eficientíssimo Professor William Tamerick, indubitavelmente o mais amado dos nossos mestres e o Francês, que aprendemos com o Professor Mello, removido em meados de 1945 e sua sucessora, a incrível Professora Dalva Nery, que depois se tornou Caivano. Esta professora, que a muitos assustava pelo seu decidido rigor e pelas suas duras exigências, foi a responsável pela formação de uma plêiade de alunos, da qual tive o privilégio de fazer parte. Dominávamos a língua francesa, tanto na conversação como na escrita, a ponto de formarmos uma Associação de Alunos de Francês, com sede no antigo prédio da Escola de Aplicação e de criarmos um programa na Rádio Difusora, onde apresentávamos textos de poemas, alguns elaborados por nós mesmos e todo o cancioneiro francês em moda naquela época. Todos estes privilegiados alunos tiveram sucesso nos rigorosos vestibulares daqueles anos, pois enfrentávamos os exames orais falando francês, falando inglês. Nos outros campos da carreira universitária, os que tiveram aulas no Curso Colegial e na Escola Normal saíam-se muito bem nas faculdades de direito, de engenharia, de medicina, de farmácia, de odontologia, de pedagogia, quase sempre livres da necessidade de enfrentarem o "cursinho".

Por esse alto nível, por esta eficiência incontestável, por esse prestígio regional, sinto-me honrado de ter-me formado no querido "Valentim Gentil" e agradeço aos céus por ter podido viver esta época de ouro da Escola Pública, que se estendeu até o final dos anos 60. As reformas impostas pelo regime militar, a implantação do acordo Mec-Usaid e o consequente êxodo da classe média de então, para o ensino privado, derrubaram o nível de nossa escola pública, a tal ponto que uma colega costumava prognosticar: "Se o nível do ensino continuar abaixando assim, vamos encontrar petróleo!".