Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

"Enquanto a penicilina não vinha"

Na minha mais tenra Itápolis, quando ficávamos doentes, ou quando nos machucávamos, ou se enfrentávamos aquela terrível dor de dente, nossas mães se socorriam de remédios e de recursos que hoje raramente ainda persistem. A medicina e a farmacologia ofereciam pequena variedade de medicamentos, se comparada à panaceia que temos nos dias de hoje. Diante de tais limites, apelava-se para o recurso caseiro dos chás, dos unguentos, dos xaropes feitos em casa e até mesmo do benzimento.

Quando a gente era atacada de dor de dente, destas que não deixam a gente dormir, destas que a gente dizia, de subir pelas paredes, a mãe da gente sempre vinha com a famosa águia de batata – colhiam-se as folhas de batata doce que eram fervidas e quando amornadas eram dadas ao sofredor para fazer bochechos. O gosto daquela água morna era insosso, de certo modo desagradável, mas tínhamos que bochechar até que a água esfriasse. 

Quando a dor de dente era dessas insuportáveis, casos de dente já bem estragados por falta de tratamento, apelava-se para o álcool e, na falta desse ia a pinga mesmo. Embebia-se uma pequena porção de algodão no álcool ou na aguardente e colocava-se no buraco do dente; o alívio vinha na hora. Lembro-me também que se podia comprar na farmácia pequenos frascos de cocaína, que era empregada para amortecer a dor do nervo do dente. E aí eu tenho uma história pra lhes contar. Brincávamos, meu irmão Roberto, minha irmã Maria Isabel e eu, quando resolvemos bancar o dentista e seus clientes. Eu era o dentista, a Maria Isabel minha assistente e o Roberto era o paciente. Mandei-o sentar-se numa cadeirinha de palha, pedi que deitasse a cabeça para trás e abrisse bem a boca. Peguei, escondido, um vidrinho contendo cocaína, que minha mãe guardava no armário, molhei o dedo com o produto e quando fui passar no dente do “paciente”, bati o braço em alguma coisa e derramei a metade do remédio na boca do meu  irmãozinho. Foi um Deus nos acuda, aquilo queima, de tão forte! A surra que levei não ficou muito atrás do susto que causei.

Outro mal que castigava as crianças naquele tempo, era a dor de garganta, seguida de rouquidão e febre. E lá vinha a Dona Bebé com aquele “pincel”, improvisado numa caneta com algodão alinhavado na extremidade mais fina! O “pincel” vinha embebido em Azul de Metileno, um preparado farmacológico muito usado no combate às bactérias. Era o “antibiótico” daqueles tempos que antecederam a descoberta de penicilina. Aquele pincel rodando no fundo da sua garganta, para atingir as amídalas, era um verdadeiro suplício; doía e muito, dava ânsia de vômito, deixava a gente com a boca e a cara azuladas. Quem aplicava aquilo precisava ser enérgica e decidida, pois a “vítima” esperneava, muitas vezes era preciso que outra pessoa a segurasse. Minha mãe, lembro-me bem, era implacável! Pincelava o tanto que fosse preciso, não adiantava implorar.

 Tempos depois, quando as farmácias já vendiam remédios prontos, surgiu um substituto para o Azul de Metileno, o Colubiazol, substância líquida avermelhada. Só mudou a cor, porque o martírio era o mesmo, as pinceladas. A coisa só melhorou quando lançaram o Colubiazol spray, mas aí eu já não era mais criança. No entretanto, se a situação se agravava, se sobrevinha aquela febre alta de assustar, caso de se chamar o médico, certamente esse receitaria a aplicação do prestigiado anti-inflamatório da época, a Antiflogestina, uma pasta bege, que vinha acondicionada em latas de 250gr e era composta de plantas medicinais; após ser aquecida até uma temperatura tolerável era aplicada no peito e nas costas do doente, como o pedreiro espalha a massa num piso, numa parede. Aquilo grudava na pele e era retirada com aplicação de panos quentes.

A Antiflogestina era um remédio que gozava de grande prestígio junto aos médicos e às famílias. Para auxiliar na cura e aliviar os sintomas daquele estado febril e dolorido, entravam os xaropes preparados em casa. Aí a situação do doente experimentava um grande alívio, pois esses xaropes, além de serem eficazes para acalmar a tosse, eram geralmente deliciosos. Só de sentir o cheiro que vinha da cozinha quando faziam o xarope de flor de mamoeiro ou de folhas tenras de figueira, parecia que a doença estava indo embora.

Se era época de frio, o chá de casca secas de laranjas era outro bem-vindo bálsamo. Outro preparado caseiro muito usado era a gemada. Quanto mais forte era sua composição, melhor o resultado. Lembro-me de quando tinha uns 10 anos de idade, contraí uma gripe fortíssima e fui acometido de uma tosse dessas que fazem o peito arder, era a tal tosse de cachorro. Nada ajudava a melhorar, minha mãe já tinha feito tudo que sabia. À noitinha chegou em casa uma velha amiga da família, que morava no sítio, a Dona Carola Milani. Quando me viu naquele estado, ouviu-me tossindo, perguntou pra minha mão se lá em casa tinha ovos e como tinha, foi pra cozinha e em pouco mais de 10 minutos trouxe-me uma gemada diferente das que eu estava acostumado a tomar, era uma gemada cor de café com leite. Minha mãe me ajudou tomar aquela obra-prima da delícia! Nunca mais nesta vida encontrei uma gemada tão saborosa e o melhor disto tudo é que logo que tomei, comecei a sentir uma sensível melhora. Logo fiquei bom e, como a Dona Carola ainda se hospedava lá, perguntei como tinha feito aquela maravilha. Fiquei sabendo que naquela xícara tinha, além das gemas, do açúcar, tinha canela, cravo da índia, amendoim e mel de abelha. Nunca mais me esqueci daquela velhinha simpática e alegre.

Plantas das quais eram preparados os "deliciosos" chás

Boldo Carqueja Losna Poejo

Se o mal que nos afligia era estômago embrulhado, dor na boca do estômago, cólicas gástricas, aí entravam os chás. Era chá de boldo, de carqueja, de poejo e o intragável chá de losna, de um gosto extremamente amargo, que por causa deste chá, me fez detestar sabor amargo por toda minha vida. Quando alguém estava passando mal do estômago ou dos intestinos e que vinham com chá de losna era um verdadeiro desespero. A coisa era terrível, seu gosto amargo continuava na boca até no dia seguinte, Mas a losna, tanto quanto a carqueja, o poejo e o boldo, têm um poder de cura esplêndido, mas todos são de sabor desagradável ao paladar. Se nada disto resolvesse, o jeito era comprar e tomar a eficiente Magnésia Fluida de Murray, que parecia água, quando não era composta com violeta genciana, um aditivo medicinal que a deixava arroxeada e quase não tinha gosto, mas aliviava rapidinho. A violeta genciana ali entrava com a função de combater o excesso de acidez, mas este medicamento costumava ser usado para tratamento de queimaduras e era também muito usado para dar vários coloridos aos cabelos.

O "milagroso" Bálsamo Bengué"

Quando a gente se machucava, num tombo, numa martelada no dedo, num corte na perna, no braço, uma cabeçada na quina de um armário, logo os remédios caseiros apareciam. Eram a salmoura, o lado frio da faca de aço sobre o galo, a bolsa de água quente, outros preferiam usar bolsa de água gelada, o paninho dobrado pra fazer uma compressa. Quando não havia remédios desinfetantes disponíveis no local, usava-se como expediente o álcool, o vinagre e até mesmo a Creolina. Minha mãe sempre tinha no armário de remédios um vidro de Água Végeto-mineral, que tinha um cheirinho muito gostoso e que dava alívio imediato quando você levava uma pancada, principalmente aquela dolorida quando é no dorso do pé. Minha Vó Nenê costumava usar outro remédio, o Bálsamo de Bengué.

No caso de doença nos olhos, a conjuntivite, por exemplo, que era popularmente chamada de dor d’olho, já se usava a Água boricada.  Eu era bem pequeno quando Itápolis teve que enfrentar uma epidemia de tracoma, um tipo de conjuntivite rebelde, doença que atacava a mucosa ocular deixando-a infectada por uma matéria granulada que afetava o globo ocular, causando cicatrizes. Meu pai participou da campanha de erradicação do tracoma, que era feita de casa em casa. Os agentes do Posto de Saúde vestiam um uniforme cáqui e penduravam uma bandeirinha amarela na entrada da casa que estavam inspecionando. As pessoas de todas as idades, menos os bebês, eram submetidos à aplicação de nitrato de prata, que era passado com a ajuda de um pequeno bastão de vidro, sobre o globo ocular. Os aplicadores empregavam uma técnica de virar as pálpebras da pessoa, o que facilitava bem o seu trabalho. Eu tive tracoma e até hoje a mancha que ela deixou no branco dos meus olhos é bem visível quando o oftalmologista me examina.

Naquele tempo havia muitas crendices com relação ao tratamento das diversas enfermidades que vitimavam as pessoas. Usava-se muito o benzimento, as simpatias e certos recursos bem estranhos. Eu mesmo, ainda garotinho de uns cinco anos, pude participar de uma dessas aberrações. Nossa vizinha, a Sinhana Baiana, pessoa que era muito querida das crianças e dos menos favorecidos do nosso pedaço, me chamou ao seu portão, numa noite em que eu brincava na calçada e me pediu: “Faz um favor pra Sinhana, meu filho” e, estendendo a mão em concha, me surpreendeu pedindo: “Faz pipi aqui na minha mão pra eu passar nos olhos, eles estão doendo muito!” Inicialmente eu me assustei com aquilo, mas ela insistiu com jeito tão sofrido e eu a queria tão bem que atendi ao seu pedido. Assim que acabei aquele gesto inusitado, ela entrou levando a mão nos olhos. No dia seguinte ela me chamou e me deu uma moeda de prata, como agradecimento por eu tê-la ajudado a curar-se da dor naqueles olhos de extrema bondade.