Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

"Cultive flores, renove sempre o seu jardim"

Há pouco tempo, não faz muito, um jovem leitor me dirigiu um e-mail no qual se identificou como “seu leitor oculto”, me deu o imenso prazer de afirmar que não perde nenhum de meus textos, desde que tomou conhecimento de uma das minhas crônicas. Com a mesma elegância e polidez com que me elogiou, o “leitor oculto” também me questionou sobre diversos temas que tenho abordado. O importante deste contato foi a pergunta que ele me fez e que é possível que muitos dos meus leitores gostariam de fazer. Vejam sua pergunta: “Itápolis daqueles anos não tinha gente infeliz? Não tinha dramas? Não tinha pessoas desafortunadas?”.

Foram estas palavras, aí reproduzidas fielmente, que me puseram contra a parede, pois eu me propus, desde quando decidi abordar a minha terra dos anos 30, 40 e 50, a não mexer na ferida de ninguém, a não revolver os episódios que trouxeram dor e sofrimento à gente com quem convivi. É claro que tais fatos aconteciam, seria inexplicável que não os houvesse.

Sem fugir aos meus propósitos, o que posso dizer é  que a cidade tinha seu lado cor de rosa, seus dias iluminados, como tinha também sua face sombria. Só que era muito diferente da atmosfera que reina hoje em nossas cidades, na vida comunitária.  Existiam ricos e pobres, feios e bonitos, perfeitos e deficientes, fracos e fortes, como sempre existiram em toda a história da humanidade. O que diferia dos tempos atuais era a maneira como todos estes “diferentes” se relacionavam. O pobre dificilmente precisava pedir, os mais afortunados não se esqueciam deles; havia mil maneiras de ajudá-los, sem lhes ferir os brios. Era um serviço para fazer, uma roupa que não servia mais, uma comida que sobrou da festa, um emprego que caiu do céu. O pobre da minha época se relacionava tão bem com os de melhor sorte que era comum vê-los em lugares comuns, em festas, em reuniões. Havia um congraçamento natural entre as várias classes sociais. Num banquete oferecido a alguém que se homenageava, podia-se ver lado a lado, o fazendeiro e o carroceiro, o camarada da prefeitura e o tesoureiro municipal, o lavador de carros e o dono do posto.

Não para nisto a explicação desta harmonia. Os muito ricos eram poucos e não se faziam perceber e diferenciar pelas suas posses. O que mais havia eram os remediados. Eu já disse, em crônicas passadas, que as casas das pessoas de posse eram confortáveis, eram espaçosas, mas não eram luxuosas, eram simples, não apresentavam ricos acabamentos, não tinham dimensões exageradas, eram de fácil acesso e acolhedoras. Ninguém usava os automóveis ou outros veículos para exibirem seu poderio econômico, as mulheres faziam serviços domésticos apesar de terem empregadas; as crianças, ricas ou pobres, frequentavam as mesmas escolas, brincavam nos mesmos quintais, debaixo das luzes dos mesmos postes da rua. Este convívio harmonioso amenizava a condição de pobreza.

Vicentinos com famílias assistidas - Local: Lateral direita da Igreja Matriz

SSVP preocupação constante com os menos afortunados

1-Dadá, 2-Domingos Lapenta, 3-Victório Machado, 4-Alcides Galacine, 5-Euclides Bruderhausen, 6-Francisco Paes Gregoratti, 7-Frei Edwino, 8-Esmael Coletti, 9-Ismael Nery Palhares, 10-Ottorino Domingos Berti

É claro que ao lado das pessoas sadias, que vendiam saúde, havia os fracos e doentes; havia os fisicamente perfeitos e havia os aleijados, os cegos, os surdos e mudos. O que não havia era tratamento especial que os lembrasse sempre  sua condição. Os cegos, mancos, aleijados, surdos, fanhosos, eram todos tratados com tamanha naturalidade que passavam despercebidos. Podia-se captar alegria vindo deles. Não vou citar, mas havia deficientes que tinham enorme sucesso nas rodas sociais.

Houve dramas familiares naquela Itápolis que eu descrevo, tão calminha e tão saudosa. Houve-os sim! Pais que perderam filhos ou filhas na flor da idade, famílias que sofreram a dor de um ente querido que ceifou a própria vida, gente que sofreu graves acidentes, alguns até perderam a vida por causa deles.  Itápolis era uma cidade como as outras, com uma população que vivia como as outras, que tinha motivos para chorar e razões para festejar. Só que, repito, era diferente! Os pobres eram menos pobres, os ignorantes menos ignorantes, os orgulhosos menos opulentos, as pessoas eram em geral altruístas, tinham um modo de ver seu próximo de forma menos egoísta. Havia, naquela gente, o senso do coletivo, que não existe mais hoje. Isto amenizava a pobreza, atenuava a dor, dava suporte para superar uma tragédia pessoal ou familiar. A solidariedade, naquele tempo, não era uma expressão vazia, era consistente e palpável, vinha natural.

Eu posso dizer tudo isto com conhecimento de causa, pois nasci e cresci numa família pobre, que tinha sempre que lutar pelo seu hoje para que sobrasse para amanhã. Não nos faltou jamais a amizade dos vizinhos, a consideração das pessoas de todos os níveis, a boa acolhida em todos os lugares.  Eu e meus irmãos tivemos uma infância e uma juventude cheias de pequenas e grandes alegrias, nunca nos sentimos discriminados por ninguém e quando a vida nos sorriu mais confortável nada mudou em nosso modo de conviver com todos.

O que guardo da minha passagem por minha terra natal é muito positivo; foram tantas as alegrias, os momentos felizes que, se houve grandes e pequenas tristezas, foram engolidas pela alegria de viver.

Ao meu “leitor oculto” cumpre então dizer: vá exercitando a capacidade de esvaziar o seu vaso de lágrimas, substituindo-as pela beleza das flores, pois assim fazendo, meu caro, o seu outono e o seu inverno terão as cores e o brilho de uma eterna primavera.