Histórias que não foram escritas

 

Orestes Nigro

"Os pontos cardeais de minha infância"

O sol se levantava atrás da caixa d’água, eu achava que ele morava em Araraquara e eu nem poderia imaginar que o slogan daquela cidade é “Morada do Sol”. No meu costumeiro viver contemplativo, enquanto não me chamavam para os deveres do dia a dia, ficava acompanhando a trajetória do astro rei e, se esqueciam de mim, seguia-o até esconder-se atrás da Casa Brasil, que depois virou Casa Rondelli, a loja mais alta da esquina da Rua Padre Tarallo com a minha Francisco Porto. Desde a minha mais tenra infância, a contemplação das coisas naturais era o meu melhor passatempo. À tarde ficava a mirar as nuvens, suas silhuetas, seu caminhar ao sopro dos ventos, no crepúsculo eu costumava esperar por duas coisas que me encantavam: o soar dos sinos da Matriz anunciando o “Ângelus” e os raios multicores do sol a se deitar na cama imaginária que ficava atrás do mato do Ciniro, meu ponto de referência para o caminho da felicidade.

Usina Hidrelétrica do Ribeirão dos Porcos

Verdade! Aquela mata fechada, atrás da colônia de casinhas brancas, era a indicação do lado que ficavam vários dos objetos dos meus prazeres. Quando criancinha, era pra lá que íamos para o Ribeirão dos Porcos, nas pescarias do meu pai e para a Fazenda do tio Manoel, lá nas “3 Barras”. Mais crescido, era para aquelas bandas que eu ia buscar jatobá, caçar rolinhas, fazer longas caminhadas pela estrada, sem parar para beber água até chegar no Rio das Onças, morrendo de sede, para sorver aquela água límpida, cristalina e fresquinha que me matava sede e me lavava o rosto suado. Quando mais crescido, era para aquele mesmo lado que eu ia, com os amigos em bando ou solitário, até o campo de aviação, onde eu ficava assistindo às decolagens e às aterrissagens dos teco-tecos que alimentavam meu sonho de pássaro livre.

Programa de Auditório da Rádio Difusora de Itápolis

1-Hélio Ricoi Camargo, 2-Khalil Feres Jr, locutor, tendo atrás de si, Alberto Sensato (do pandeiro), 3-Silas do Amaral, 4-Geraldo Antônio Gentile, 5- Monclair Portolani, 6-Wladéia Franco, 7-Ariovaldo Pécora (era de fora, salvo engano, morava com a família do Sr. Dante Bacci, para estudar em Itápolis), 8-Leonilde Regiani, 9-Osdemar Tombi, 10-José dos Santos (conhecido como "Zé Oreia")

E quando chegava a minha noite, lembro-me que, antes de ir brincar na rua, a magia das músicas clássicas que o Fares apresentava na nossa Rádio Difusora, com o Traumereis, de Schumann, a Serenata, de Schubert, o Concerto nº 1, de Tchaikovsky, o Noturno, de Chopin, a delicada “Meditação” de Massenet e muitas outras riquezas para a época, essa magia me transportava para um mundo de sonhos e de encantamento.

Piscina do Marconi, hoje lago do Parque Ecológico Boa Vista

O nascente e o poente foram sempre minha bússola a me indicar a trajetória do meu destino. Não demorou muito para eu compreender que a vida é o trajeto entre o nascente e o poente, que nosso traçado é obrigatório neste sentido. Você nasce, alcança as alturas onde estampa o seu protótipo e depois pega a descida até desaparecer atrás  da mata virgem, onde moram os mistérios que você não desvendou. O leste é nosso berço, o oeste nosso infalível silenciar. O sul, ah! Lá era Ibitinga, nossa eterna opositora, o sul, não tinha a menor graça, a não ser nas noites estreladas em que se podia contemplar o Cruzeiro lá no céu. O norte era simpático, nos levava a recantos deliciosos, como a Piscina do Salim, que depois foi dos Marconi e depois não sei mais. No norte também estavam as Antas, o Leiteiro, mais adiante, Tapinas, mas o norte não norteia nosso destino, eu já disse que é o poente o nosso norte.

Nossa cidade tinha pedras que rolavam pelas ribanceiras, tinha terra fértil, de uma fecundidade que terra nenhuma tem melhor, mas não tinha montes nem montanhas. Nossas elevações eram as que construíamos na imaginação. Quando eu era bem criança e até mesmo quando crescidinho, minhas montanhas eram duas: a mangueira do quintal dos Monzillo, onde eu brincava com o Vadinho; a segunda montanha era a mangueira de manga espada do quintal da dona Apálice Gentil, atrás da qual se escondia o núcleo central da cidade, com o prédio do ginásio, o Boulevard, o Cine Theatro Central, a Praça Pedro Alves de Oliveira, o prédio da Cadeia e do Fórum e a Estação da Douradense. Aquela mangueira era para mim a grande barreira que separava nosso pedaço, do Centro.

Bar Boulevard, onde hoje está instalada a loja Ao Peço Fixo Cine Theatro Central Praça Pedro Alves de Oliveira
Prédio do Fórum e Cadeia Pública, hoje Museu Histórico e Pedagógico Alexandre de Gusmão Fachada frontal da Estação da Estrada de Ferro Douradense

Bem mais tarde eu fui perceber que a linha do destino, que nascia na aurora e descansava nos raios do anoitecer, tinha uma elevação invisível, que acompanhava o arco percorrido pelo sol. Por ele a gente sobe, alça voos, ganha tudo que a vida oferece, entes queridos, amigos, colegas, a primeira e as outras namoradas, instrução, profissão, família, muitas vezes sucesso. Por ele também a gente é levado a descer e começa a conhecer as perdas, a das pessoas queridas, a dos irmãos que se casam, a dos filhos que crescem e fogem dos seus braços, a do vigor que nos fazia valentes e conquistadores, a da plena saúde, a perda dos velhos costumes, dos ídolos, do universo que nos cercou de canções, de paisagens, de objetos de prazer e de admiração. A descida desta montanha nos dá o verdadeiro significado de nós mesmos, seres frágeis que se imaginam rochas. Só que as rochas duram muito mais, mas muito mais!