Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

"Como esquecer essa gente?"

Todos nós temos lembranças mais nítidas de fatos e pessoas contidos no nosso meio familiar e nos nossos ambientes sociais e profissionais. Quem não se lembra com facilidade daquele tio engraçado, daquela prima bonita, daquele parente esquisito? Quem não se lembra daquele professor ou daquela professora que se destacavam ou pela beleza física, ou pelo estilo de aula, ou pela relação mais afetuosa com seus alunos? Eu não me esqueço do nosso inspetor do Ginásio que, quando ficava bravo, chamava o aluno abusado de poligelota!  Ele viu a palavra poliglota escrita em algum lugar e achou tão feia que pensou que fosse um palavrão, por isto ele exclamava “Vê se toma jeito, seu poligelota!”

Agora vou trazer lembranças de um dos meus ambientes de trabalho quando eu vivia em Monte Aprazível. No antigo Instituto de Educação eu destaco várias figuras, tipos inesquecíveis. Um deles era o Fernando Graça, cujo nome completo era Fernando Guiguet Graça, irmão da Dona Dilma Graça Maset, esposa do então presidente da Câmara Municipal, o Pierin (Pedro Antônio Maset) e secretária do colégio, tinha uma irmã casada com o conhecidíssimo Tuim, que se chamava Lilian e o José Graça, irmão dele que trabalhava no Banco do Brasil. Fernando Graça, sempre tratado assim, era primo do Dr. Wilson Guiguet Leal, então prefeito da cidade. Fernando Graça era inspetor de alunos, mas sua principal função era o comando da fanfarra do colégio! Aquela fanfarra dos anos 60 era motivo de orgulho para os aprazivelenses, ganhava prêmios em todos os certames de que participava, era um show à parte com suas evoluções, seu ritmo irrepreensível, a afinação dos seus metais e a sua disciplina, e o Fernando Graça, com seu carisma, sua dedicação de corpo e alma, tinha grande porcentagem de “culpa” nisto. Fernando era incansável, era pontual,  criativo, exigia dedicação sem ser prepotente, pois era adepto do diálogo como forma de solucionar impasses, conflitos. Fernando falava baixo, era discreto, não procurava atrair louvores e aplausos ao seu trabalho. Meu grande amigo desde que me instalei na cidade, devo a ele incontáveis favores, resultados de sua incrível riqueza de relacionamentos na cidade.  A bela casa que aluguei para morar foi ele quem descobriu, falou com o Dimas Danelucci, que acabara de construí-la e me comunicou “Pode arrumar a mudança, a casa já está garantida, é pra baixo do Mercadão, bem perto de tudo”. E era mesmo.  Fernando  sofreu também as agruras da ditadura militar, mas nunca notei nele nenhum ressentimento, nenhuma revolta, nisto nos identificávamos. Hoje ele vive em Rio Preto, faz tempo que não o vejo como quando ia mais pra lá e aos sábados o encontrava comendo seu pastel no Mercado Municipal, onde e quando a gente encontrava sempre outra figura inesquecível, o Professor Gino Papa, que, lamentavelmente, já nos deixou.

Já que falamos em inspetor de alunos, como esquecer o Sr. Silvestre, já em vias de se aposentar,  da Dona Agripina, figura que transpirava respeito, simpatia e bondade? A mãe da Cidinha e do Onivaldo, irmã do Sr. Brás Rodrigues, cunhada da simpática e querida Dona Verônica, tia da Mariinha, da Nilva, da Célia, da Mercedes, e da Cecília. Dona Agripina, cujo prestígio e respeito eram unanimidade entre os funcionários, professores e alunos, punha ordem na bagunça apenas com seu olhar silencioso e maternal, nunca a surpreendi elevando a voz para alguém. Dona Laura Cioti, Dona Vitória, Dona Lourdes Salgueiro, Dona Olga, Flauzino, Cidinho Teixeira, formavam com o Fernando Graça uma das melhores equipes de cuidadores da disciplina dos alunos que pude conhecer em meus quarenta e dois anos de magistério. Tínhamos a maioria das classes naturalmente disciplinadas, não davam trabalho, mas tinha que haver aquelas classes que deixavam os professores de cabelo em pé. Lembro-me quando a Dona Ruth me chamou, logo que cheguei para dar aulas no curso noturno, e me perguntou: “Qual é a classe mais disciplinada, mais calma que você tem?” Na hora eu respondi: “O 1º I” . “Ah é, disse-me ela. Você vai dar esta classe para a Maria Célia Leal e vai pegar o 2º D! Isto é pra já.  A Maria Célia é nova no ofício e não suporta mais a indisciplina daquela turma e eu sei que você pode dar conta disto!”  E lá fui eu para o 2º D, pois o Francês era a primeira aula deles. Quando nem bem me aproximava da classe já ouvi a zoeira, saíam até faíscas pela porta. Cheguei, parei na porta, não entrei. Lá dentro havia alunos sentados sobre as carteiras virados para frente, de costas, de lado, tinha alunos espiando pelos vitrôs, só tinha uma coisa comum a todos: falavam sem parar e alto. Fiquei ali estancado, não entrei.  Devagar começaram e perceber que eu estava lá; uma aluna, a Eufrásia, foi quem me viu primeiro e logo gritou: “Gente, o professor!”, “Uai, gritou o Junior, irmão do Jader, é o senhor?” Aí o Justino, hoje dono da Imobiliária Casa Branca, me encarou e perguntou: “O senhor não vai entrar?” e fez aquele gesto que significa “entre, por favor!” Aproveitei a deixa e comecei o meu discurso: “Aí dentro ou parado aqui, meu salário é o mesmo! Aqui na porta eu escapo mais fácil de algum doido que esteja entre vocês, e deve ter muitos. Com esta bagunça e esta barulheira não vai dar para dar aulas. Prefiro ficar aqui até esgotar meu tempo.”   Lentamente foram silenciando, sentando-se em seus lugares até que resolvi entrar. Olhei para o rosto de cada um deles e voltei ao meu discurso: “Eu venho a pé para o colégio, passo pela praça, pela padaria, pela sorveteria, vejo muitos jovens namorando nos bancos da praça, jogando sinuca no bar, tomando sorvete, outros na entrada do cinema, enfim todos curtindo a vida. Vocês podiam estar fazendo a mesma coisa, não? Mas estão aí, sentados nestas carteiras horríveis, que machucam a bunda (naquele tempo era raro alguém dizer “bunda” em público, mas eu falei), aí sentados desde às sete e vinte até quase à meia noite. Gostoso, não? E pra que? Pra perder seu tempo com bagunça?  Pra curtir um papo inútil? Pra não aproveitar nada do que lhes ensinam? Eu não faria isto, eu pararia de estudar e iria curtir minha juventude! Estou errado?”  Silêncio absoluto, a maioria me olhando por baixo.

Virei para a lousa, peguei o apagador, uma voz veio lá do meio da classe: “Posso apagar a lousa?”, não respondi, levantei o braço pra apagar, “Posso apagar a lousa?” e outra vez, “Posso apagar a lousa?” na quinta ou sexta vez,  virei pra classe e vi um rapazinho loiro, sardentinho, magro, esguio, com cara e jeito de que era ele que  fazia aquela enxurrada de pedidos. Estendi o apagador em sua direção “Vem, apague a lousa!” Ele me encarou e exclamou: “Logo eu?” Os outros alunos mal conseguiam disfarçar o riso. Caí na armadilha, foi-se embora minha pose.

Era o Alemão!   Alemão era o apelido do João Carlos Peres, filho do Osvaldo Torneiro, como era conhecido seu pai, e da Dona Olga, na época aluna do colégio, tempos depois, funcionária. Alemão tinha quatro irmãs que eram todas alunas, umas graças de meninas, dedicadas, respeitosas, a Maria Luísa, a Ana Maria, a Rita e a Rosa eram exemplos de boas filhas e de excelentes estudantes.

O Alemão, assim como o Fernando Graça, figura na galeria dos meus tipos inesquecíveis. Ele era o próprio Golias na Escolinha. Não parava um minuto, imitava bichos, imitava locomotiva, imitava carro acelerando, moto acelerando, imitava os professores, e fazia tudo com perfeição. O show era completo. Como controlar o Alemão?  Em casa fiquei pensando e na próxima aula, entrei na classe sem problemas, ao me verem, se acomodaram todos. E fiz a proposta. “Vocês são muito alegres e animados, e têm aqui um grande artista, o Alemão. Vamos fazer o seguinte: vamos dividir a aula em duas partes, na primeira parte eu explico a matéria, passo os textos, na segunda parte, fazemos os exercícios! E entre uma parte e outra, 10 minutos para o show do Alemão!  Tudo bem? Topam?”  Todos ergueram os braços aprovando a ideia. Aí eu completei, “Só que tem uma coisa, na primeira e na segunda partes vamos somente aprender, nada de prosa, nada de bagunça!, combinados?”  Combinados!  Na reunião da Congregação de aí um mês, alguns professores comentavam a mudança para melhor do comportamento do 2º D. Lógico que fiquei orgulhoso.

O Alemão nos deixou ainda muito novo, em 2003. Já morando em São Paulo, anos depois, curti o Alemão e suas histórias, ele morava lá e era bombeiro, viajou de carona comigo pra Monte algumas vezes. Sedimentamos nossa amizade, passei a gostar dele de forma diferente, admirando sua inteligência, seu ótimo humor e seu modo respeitoso de ser amigo. O Fernando Graça continua firme em Rio Preto e espero reencontrá-lo qualquer dia destes. Toda esta gente de quem falei hoje permanece intacta na minha lembrança, é só fechar os olhos!