Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

"Do que mais sinto saudade"

Sou um saudosista confesso, assumido, e cada vez que tomo conhecimento de como anda este mundo, saudosista irreversível. É pecado? Mas eu tenho tantos outros, o que tem cometer mais este?   E não é de agora que estou passado dos 80 que me tornei isto, faz já um bom tempo. Começou quando, percebendo que estava ficando com a memória invadida por pequenos esquecimentos, enveredei por um processo de exercícios mneumônicos, fazia-o logo que despertava e não era hora de me levantar. Começava relembrando os anos de minha mais tenra infância, procurando lembrar os nomes das pessoas que me cercavam, os dos vizinhos, das ruas de meu pedaço, de como eram as casas que eu frequentava. E assim fui treinando minha memória, evoluindo para épocas mais avançadas, relembrando a vida escolar, o tempo das conquistas adolescentes, os anos de faculdade, os de novas ocupações como profissional, como casado, como pai. E foi muito útil, eficaz, deixei minha memória tinindo.

Mas o que importa dizer agora é que eu não conseguia evitar as comparações. Comparar o ontem com o hoje. Eu me prometia, não vou fazer isto, isto pode levar-me a ser um saudosista que põe toda culpa no presente, mas era inevitável, a comparação saltava irreprimível. Honestamente devo dizer que nem sempre o ontem ganhava do hoje, mas no placar geral, ah, não tenham dúvida, o ontem era imbatível.

Aí o que eu fiz? Eu comecei a aplicar a “teoria do viver bem” de meu colega e mestre, Professor Buggenhagen, o catedrático de Alemão da Fafi de São José do Rio Preto, um solteirão inveterado, rico em cultura (correspondia com assiduidade com sete dos mais famosos filósofos internacionais da época, anos 50, 60). Um dia ele foi me visitar, conversamos sobre vários assuntos. Curioso perguntei-lhe: “Professor, há quanto tempo o senhor está no Brasil?” Ao que ele me respondeu, “há 24 anos”. Tornei a perguntar. “24 anos fora da Alemanha?” – “Sim, 24 anos!” - “E o senhor tem muita saudade da Alemanha?” – “Nenhuma!”  Fiquei atônito, como alguém poderia deixar sua terra, seus parentes, depois de ter vivido lá muitos anos (o Professor Buggenhagen já passava dos 60), podia não ter nenhuma saudade do seu passado, lá?  Percebendo minha perplexidade, o Professor passou a se explicar. “Caro amigo, nós estamos neste mundo numa busca ininterrupta de sermos felizes, não é? Então... temos que tirar de nosso caminho todo tipo de obstáculo, para podermos alcançar a felicidade! E eu procedo assim: para ser feliz, para continuar feliz, procuro evitar, procuro driblar qualquer fonte de sofrimento. Quando lembro que sou alemão, que existe uma Alemanha, procuro me lembrar de todas as coisas ruins, desagradáveis que enfrentei quando estava lá e que não me acontecem aqui no Brasil. Aí me vem a agradável sensação de que abandonei o que era ruim e me entreguei ao que é bom! Se eu tiver que voltar para a Alemanha, vou fazer o contrário. Vou me lembrar deste calor infernal de Rio Preto, das estradas esburacadas que temos aqui e de tudo que de ruim enfrento aqui, porque, afinal, saudade é coisa que machuca!”

Nunca me esqueci disto. Por isto que respondo aos que me escrevem criticando o clima sempre complacente com a realidade, sempre livre de maledicência, sempre evitando mexer nas feridas dos outros, de minhas crônicas. Eu fiz uma escolha: ser feliz. E a gente é mais feliz ainda se contribui para a felicidade do outro. Ser rodeado de sorrisos é muito melhor do que sê-lo de lágrimas.

Por isto, não adianta me acusar de “camuflador da realidade” como me rotulou um leitor, eu não vou desviar da minha rota. Escrevi sobre a Itápolis da minha infância e juventude! Mais de 300 crônicas! Será que nunca soube de nada errado naquela cidade, naquele tempo, daquelas pessoas?  Claro que soube! Mas esqueci, não gosto de veneno. Se alguém me der um chá de losna, eu vou até a pia e jogo fora. Se me derem um fardo pesado demais, eu deixo escorregar, olho e digo: “Caiu!” Ninguém vai me forçar a ser infeliz, como eu tampouco quero fazer alguém sofrer. Você gosta de chá de losna, de saco de chumbo nas costas, de caras feias e rombudas, sirva-se à vontade, mas não me ofereça.

Itápolis da minha infância, dos meus tempos de irresponsabilidade adolescente, era uma cidade deliciosa, e eu falei das delícias de lá. Monte Aprazível, de quando lá vivi, era um verdadeiro paraíso, assim eu sentia. Vou falar deste paraíso. Morro de saudade de meus tempos nas ruas e praças da minha terra natal, das pessoas que me cumprimentavam e que eu saudava, do sorvete que lá faziam, dos doces de suas confeitarias, do coral da nossa igreja, do serviço de alto-falantes com suas ofertas musicais, do Oeste Futebol Clube que batia em todos os times da região, das meninas lindas que não me davam bola, mas eu podia olhar. Tudo era razão pra ser feliz.

Monte Aprazível dos anos 60, com suas ruas e praças movimentadas dia e noite, com seu vigário alegre e brincalhão, com sua represa que faz mesmo a gente sonhar, com seus arredores sempre verdes e agradáveis, seus bailes com casais dançando abraçados, com sua catira, sua folia de reis, suas serestas, seu colégio alegre, produtivo e pacífico, seus professores abnegados, seus alunos e pais de alunos reconhecidos, suas quermesses animadíssimas, uma cidade colorida, isto mesmo. Sempre que estando fora de lá me perguntavam, “Como é Monte Aprazível?” Eu resumia: “Monte Aprazível é colorida! Sabe, temos filmes branco e preto e filmes coloridos. Monte é colorido!”  Assim serão meus quadros representados nas minhas crônicas! Coloridos!