Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

"Foi uma noite de trovoadas, de manhã abriu-se o arco-iris"

Março de 1965, a Aliança Francesa de Monte Aprazível, instalada na Sede Pio XII, gentilmente cedida pelo Cônego Altamiro de Assis, Vigário da Paróquia de São Bom Jesus, começa a funcionar, 126 alunos matriculados, um recorde proporcional, o município tinha na época onze mil habitantes, que chamou a atenção das autoridades francesas de São Paulo e motivou a decisão, tomada pelo Diretor da Aliança Francesa de São Paulo, Monsieur Jean-Luc Robert, de vir inaugurá-la oficialmente. A data agendada foi 18 de abril.

Além do trabalho didático, cabia-me preparar a realização daquela solenidade. Monsieur Robert enviou-me um ofício felicitando nossa escola e a cidade pelo sucesso das matrículas e também informando que viria para Monte acompanhado de uma comitiva. Juntar-se-iam a ele o Catedrático de Língua e Literatura Francesa da Faculdade de Filosofia da USP, Monsieur Albert Audubert, que se propunha a dar a Aula Inaugural, tradição acadêmica. Para aumentar ainda mais a importância do evento e minha responsabilidade, Monsieur Robert e Monsieur Audubert viriam acompanhados do Secretário Geral da Aliança Francesa de Paris, em visita ao Brasil, Monsieur Jean-Pierre Gaillon.

De início ficou decidido que a Prefeitura Municipal, por iniciativa do prefeito Wilson Guiguet Leal, hospedaria a comitiva num dos hotéis da cidade; a aula inaugural seria realizada no auditório da Sede Pio XII e as autoridades locais formariam a mesa que presidiria a solenidade. Providenciamos a feitura de uma bandeira da França, tamanho oficial e o Professor Gino Papa, diretor do Instituto de Educação ofereceu o empréstimo do pavilhão nacional. Reuni vários representantes das classes da nossa Aliança para estabelecermos um roteiro para o dia da inauguração. Tínhamos um aluno muito especial, o bancário e futuro professor, Ozias Evaristo de Mello que, por ter trabalhado no setor administrativo da nossa ainda lembrada fábrica de cola, mantida por um grupo francês, familiarizou-se com a língua francesa, ostentando uma pronúncia perfeita do idioma. Para mim estava decidido, o Ozias faria a saudação aos franceses, na língua deles. Mas, aí aconteceu o imprevisível: o Padre Altamiro interrompeu meu anúncio assim: “Nãnãnã nada disto. Quem vai saudar a comitiva sou eu, afinal a festa vai ser na Sede Pio XII, que eu dirijo e também sou aluno da Aliança e sou mais velho que o Ozias!” De nada adiantaram os argumentos, ele estava irremediavelmente decidido. Agora vejam quantos imprevistos tivemos, na realização desta festa!

18 de abril de 1965, dia da Aula Inaugural da Aliança Francesa de Monte Aprazível, a caçula da Aliance Française. A solenidade estava marcada para as 20 horas, no Auditório da Sede Pio XII. Às 19 horas, quando cheguei à escola, vi que o espaço ia ser pequeno, já havia gente espalhada por todo o prédio e na calçada. O Edésio e a Dirce corriam pra lá e pra cá, procurando acomodá-los. As alunas Dona Neuza Braga, professora, mais a Dona Tetê (Maria Tereza Faria Gagliardi), mais a Professora Luiza Marcondes de Mello, mais os alunos Ivan Rui,  Siboney, a Professora Dirce Maset e outros de que não me lembro, ajudavam na organização da plateia. As horas corriam e a comitiva nada de chegar. 8 horas, 8 e 15, 8 e meia e nada! Eu estava perdidão, no meio das autoridades já presentes. Concluiu-se que eles não viriam mesmo, que algo os teria impedido. Aí chegou o Antônio (Toninho) Egydio, marido da aluna Dona Edna, trazendo uma sugestão. Eles estavam hospedando um familiar ilustre da Dona Edna, o padre Celso de Sillos, o famoso Padre Celso de Ribeirão Preto, pessoa culta, conferencista, que poderia salvar a situação. Conversamos e decidimos convidá-lo a fazer uma conferência para aquele enorme público. A Professora Ruth de Carvalho Ceneviva, presente, vendo aquele povão que não caberia no auditório, na condição de Diretora Assistente da Instituto de Educação “Capitão Porfirio de Alcântara Pimentel”, ofereceu o auditório da escola e fomos todos para lá.

Todos instalados no auditório do I.E., as autoridades presentes, prefeito, juiz da comarca, promotor, delegado de polícia, Padre Altamiro, Tenente Dônice de Oliveira, encarregado do recrutamento militar, em cuja sala no antigo prédio do Correio, eu tinha que me apresentar a cada dez dias, resultado da minha prisão política. E entra o Padre Celso! Aquele homem alto, esguio, bem apessoado, vestido com um terno preto e colarinho de padre, com voz firme e dicção perfeita anunciou: “O tema que escolhi para falar-lhes é “Capitalismo e Comunismo, um falso dilema”. Só pude ver que as expressões das autoridades variavam da surpresa ao constrangimento. Afinal, estávamos ainda ano primeiro ano de um governo ditatorial, intolerante, vigilante sobre os intelectuais principalmente e eu era um egresso da prisão política. E o Padre Celso deitando falação, criticando abertamente o regime capitalista e analisando com perceptível simpatia a economia segundo o comunismo. O auditório se dividia entre uma maioria de alunos jovens que se interessavam pela palestra e os mais maduros visivelmente irritados. E o padre falando, até que o prefeito levantou-se e se retirou bradando protestos, foi seguido por alguns dos presentes. E eu pensava comigo, “Tô preso de novo!”

A conferência terminou, com algumas palmas e algumas vaias. A mesa toda cumprimentou o conferencista de forma rápida e foram saindo. Quando passavam por mim todos, indistintamente, me diziam: “Fique tranquilo, foi uma palestra para acomodar o público e você não é responsável pelos incidentes!” Ouvi isto em diversas formas de expressão, do juiz, do promotor, Dr. Marcos, do delegado Dr. Zahir Dornaika, e para minha definitiva tranquilidade, do Tenente Dônice. Na manhã seguinte, logo cedo fui convidado a ir à casa do Prefeito Wilson Leal que me abraçou, pediu desculpas pelo seu gesto, que disse ter sido irresistível, e me tranquilizou dizendo, “Nigro (o Wilson Leal nunca me chamou de Orestes), você não tem culpa de nada, você já é querido por toda esta cidade e muito por nós, não é, Hebe? E eu tenho uma boa notícia: os franceses chegaram, eles erraram a data, achavam que era hoje. Viajavam numa cabine-leito do trem da Paulista, quando ouviram alguém falando em francês na cabine vizinha. Bateram na porta e quem estava lá é o Sr. Dan, genro do Sr. Paca e dono da fábrica de cola. Eles estão hospedados na casa dele e o esperam às 10 horas.

À noite, a Aula Inaugural aconteceu e teve seus lances inesquecíveis também. Mas isto fica para nosso próximo encontro.