Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

"Shakespeare abriu caminho e os poetas visitaram a cidade"

No tempo em que vivi aqui, em Monte Aprazível, havia três espaços disponíveis para a instalação de circos e de parques de diversão. Um era onde hoje está a Estação Rodoviária, naquela quadra entre as ruas Getúlio Vargas e Amador de Paula Bueno, com frente para a Rua Osvaldo Aranha e era conhecido como “Buracão”. Outro era no terreno onde agora está nossa Delegacia Regional de Polícia e Cadeia Pública e o terceiro era num terreno localizado na esquina da Rua Tiradentes com a Rua Castro Alves, local próximo de minha casa, o que nos propiciava ouvir todo o repertório musical lançado ao ar pelos alto-falantes dos parques, que circo nunca vi lá. Foi num destes parques que curti inúmeras vezes o Carlos Gonzaga cantando “Oh Diana”, o Neil Sedaka cantando “O Carol”. Primeira música que a Lília cantou e dançou, nos seus dois anos e meio. E num outro parque ouvi por vez primeira a deliciosa moda “O rio de Piracicaba”.

De um parque instalado no terreno da atual Delegacia foi que tirei a ideia de contratar o Edésio Silva (in memorian) para me ajudar na futura Aliança Francesa, pois ele, menino de 12 anos,  aluno que se revelara arguto e decidido no ginásio, estava numa barraca vendendo “maçã do amor”, que preparava com desenvoltura; pensei comigo “este menino vai resolver meu problema.” E acertei.   Outra lembrança curiosa se liga a um circo que foi montado no Buracão, em maio de 1969. Eu dava aula na Aliança Francesa, ali perto, quando entra a Celeste, muito nervosa, quase chorando, porque nosso filho Ricardo tinha sumido, eram quase dez da noite e “cadê este menino?”. Eu interrompi a aula, Dr. Paulo Polati que estava na classe, me acompanhou tentando ajudar, saímos à rua, onde se ouvia o burburinho que vinha do circo, olhei pra lá, lembrei-me: “Gente, o Ricardo passou aqui à tarde e me disse que ia, com o Tato e o Pelego, ajudar na limpeza do circo! Devem ter ganhado ingressos.” Fomos para a frente do Circo e esperamos terminar. O primeiro que saiu foi o Ricardo!,   todo preocupado por causa da hora e para variar, tinha esquecido de nos avisar.

O circo e o parque de diversões, agregadores das diversas camadas sociais, foram uma riqueza do mundo do lazer que está cada vez mais distante das sociedades modernas, individualizadas e acomodadas pelas falsas benesses trazidas pela frenética evolução e produção tecnológicas, onde digitar substitui falar, o assento do carro, o sofá e seus similares substituem as andanças do homem de até o Século XX. O circo trazia a arte popular do humorismo espontâneo e ingênuo do palhaço, esta alegórica criação do ser ator, verdadeiro monumento da arte pantomímica,  consagrada pelas crianças, tanto as reais como as embutidas nos aparentes adultos. O circo levava o malabarismo, o mundo dos animais amestrados, o radicalismo do globo da morte, levava  o teatro ao público de todas as classes. E o Circo Garcia, de bela montagem e qualidade, instalado no terreno da futura Delegacia Regional,  proporcionou ao mundo da arte teatral, uma das experiências históricas da dramaturgia brasileira. E isto de deu em Monte Aprazível, num período ainda nebuloso da ditadura militar, muitos, como eu, ainda pisávamos em ovos, dados os riscos da repressão. Desde estudante fui muito ligado ao teatro, tive alunos que brilharam nos palcos, como Gianfrancesco Guarnieri, Paulo José, Vladimir Herzog, na verdade Vlado, sociólogo, jornalista e pertencente ao grupo de teatro “I GUITI”, dirigido pela Lélia Abramo; por esta razão tive e tenho amigos da classe teatral, o que valeu para Rio Preto,  a vinda frequente de troupes teatrais de São Paulo e a própria construção do Teatro Municipal daquela cidade. Grande parte de meus amigos atores estava em apuros com os agentes da repressão, dentre eles o Juca de Oliveira, na época amigo pessoal meu, que atravessava uma fase de vacas magras, com dificuldade de atuar. Aí aconteceu aquilo a que chamamos coincidência providencial.

Monte tinha um aprazivelense na equipe técnica da TV Tupi, encarregado da iluminação, que me lembro, era da família Tonon. Este moço conversava com Juca, nos corredores da emissora quando o nome da cidade surgiu e o Juca perguntou a ele se sabia de mim, pois tinha notícias de que eu vivia em Monte. As coisas caminharam e o Juca conseguiu entrar em contato comigo. O negócio era conseguir para ele uma apresentação que rendesse alguma grana, pois estava “a perigo”. E o que que o Juca tinha para mostrar no palco? Um monólogo que era um alinhavado de poemas que vinham desde Shakespeare, grande escritor inglês que viveu e produziu poesia, peças teatrais, ensaios filosóficos, entre os séculos XVI e XVII até chegar no nosso grande poeta, Carlos Drummond de Andrade, no século XX. Topei a parada, mesmo um pouco em dúvida se um monólogo poético iria interessar o público de nossa cidade. Everaldo Nazareth se entusiasmou e ofereceu o salão do Aprazível Clube, o Padre Altamiro ficou eufórico e já pensava em como transformar o recinto e o  palco da Sede Pio XII para receber o Juca. O Wilson Leal, prefeito, se dispôs a montar um teatro ao ar livre na Praça São João. Nesta dúvida é que passamos a preparar a vinda do artista.

O Circo Garcia era um dos grandes circos que faziam turnê pelo interior

Eu estava dando aula na Aliança Francesa, que já funcionava no antigo ginásio, em frente à Santa Casa, quando a Dirce me avisa que uma senhora queria porque queria falar comigo, era a dona do Circo Garcia, Dona Ivete. O que queria ela? Simplesmente oferecer a solução de nosso quebra-cabeças. Veio oferecer o picadeiro do Circo Garcia para seu grande ídolo, Juca de Oliveira. Esperou que eu acabasse de dar aulas e me levou para conhecer as instalações do circo, convenceu-me, ia dar certo. E o Juca veio.  Quando falei que seria no picadeiro do circo sua apresentação, morrendo de medo de vê-lo rejeitar a idéia, o moço sorriu e disse: “Orestes, vou realizar um grande sonho! Vou atuar no circo! que maravilha!!!” Acomodou-se no hotel, entreguei-o para um dos melhores alunos da Aliança Francesa, o Julinho Amarante, que foi seu cicerone, mostrando-lhe a cidade, levando-o a um encontro com os alunos do Capitão Porfírio de Alcântara Pimentel, onde o Juca fez delirarem as meninas e moçoilas, levou-o à nossa Rádio Difusora onde o Sebastião o entrevistou. O artista se recolheu ao hotel, onde pretendia se concentrar para a noite excepcional que iria viver.

Teve gente que achou uma loucura, que haveria confusão, “imaginem uma plateia de circo ouvindo poesia!”  Gente de Monte! Foi uma noite inesquecível para a plateia e para o ator! As cadeiras e as arquibancadas estavam lotadas, a expectativa era excitante, as luzes foram se apagando lentamente até ficarmos nas trevas. Lentamente foi voltando a luz do picadeiro onde reinou um Juca impressionante. Vestia preto, com uma espécie de lenço branco escapando da gola; aquela figura alegórica contrastava com o dourado da palha de arroz que se espalhava a seus pés. E os versos de Shakespeare, de Dante, de Baudelaire, de De la Barca, de Castro Alves, de Gabriela Mistral, de Pablo Neruda, de Cecília Meirelles, de Vinícius e do grande Drummond deslizaram na suja eloquente voz,  num alinhavado perfeito que emudeceu e eletrizou, ao mesmo tempo, uma plateia primorosa, onde havia todo tipo de cidadão, mas ligados como que hipnotizados pela sublimidade da poesia! O aplauso foi intenso, foi de pé e acompanhado de uma longa interjeição dizendo “que pena!”.

E o espetáculo do povo presente não parou aí. O ator estava convidado para um  coquetel na casa do prefeito Wilson e Dona Hebe, que tiveram que esperar quase uma hora e meia para o percurso do ator entre o Circo Garcia e a casa deles a seis quarteirões e meio dali.  Eram os jovens, os adultos, os idosos que o cercavam! Para pedirem autógrafos? Não, e aí está a nota alta que mereceram! Era para que Juca repetisse versos que ouviram e que os encantaram, numa demonstração inequívoca de civilidade, de interesse cultural, de povo surpreendentemente educado!

Juca partiu no dia seguinte, pela VAP, depois pelo Cometa, levando na mala toda a renda do espetáculo, que há de ter-lhe dado um bom alívio. Levou consigo uma bela impressão da nossa Monte Aprazível. E também levou a alegria de um sonho realizado e do qual até hoje se orgulha! E nós por aqui ficamos, curtindo o orgulho de um comportamento elogiável e inesquecível e, nunca mais, surpreendente!