Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

"A cidade que represa os sonhos"

Nos anos 60, nossa Monte Aprazível ainda respirava o urbanismo que caracterizava as cidades paulistas, tanto do ponto de vista das relações sociais como no plano cultural e artístico. A maioria das pessoas curtia o papo na calçada nas noites de calor, o papo sentados na frente do clube da cidade, nos bancos das praças,  curtia serenatas onde se cantavam valsas, canções românticas, samba canção, boleros, tangos, fox americanos, todos de inspiração urbana. Havia o gosto por obras típicas do campo, como a moda de viola, o rasqueado, a guarânia paraguaia, as obras do folclores sertanejo, mas o que predominava era o estilo inspirado e arranjado da cidade. O gosto por música estrangeira sempre foi e continuava forte, o brasileiro é um povo universalista, que se interessa pelo que vem de fora, pelas pessoas de origem distante, com linguajar diferente. O brasileiro não força o imigrante a falar na nossa língua, ao contrário, procura aprender a língua dele, o que acho admirável. O gosto artístico e musical da época ainda era diversificado, o brasileiro gostava do show de variedades, como o teatro de revista, como os musicais. O cinema, ao contrário da televisão, tirava as pessoas de casa e isto incrementava o convívio social, pois as pessoas se encontravam na entrada do cinema, conversavam durante o tempo da espera do filme, em Monte Aprazível tinha gente que conservava o velho hábito de fazer visitas e de pagar visitas.

Por falar em cinema, quero contar-lhes um fato que acho que só nesta cidade acontecia. Você ia ao cinema e era um ritual, esperar abrir, comprar o ingresso, encontrar e, se desse, escolher a fileira, sentar-se e esperar a seção começar, ouvindo música feita para aquele momento, som suave, canções macias, instrumentais, num volume que permitia a conversa. Aí acontecia o inesperado. Se ela resolvia ir ao cinema, acontecia. Ela era a Rosana, filha da Dona Mafalda Cera e do Sr. Guiné Cabrera, nossos vizinhos de casa e de coração. A Rosana, menina linda, esperta, ainda menina mesmo, subia no palco do cinema, diante da cortina ainda fechada, e oferecia ao público um show de sua criação: cantava, contava histórias, saudava o público, tudo com uma desenvoltura inacreditável para uma criaturinha tão pequena e delicada. Rosana Cabrera, irmã da bela Rosângela, era nossa artista exclusiva, só Monte Aprazível podia curtir sua espontânea comunicabilidade.

Vivendo e vivenciando este espírito, sabendo do gosto pela variedade, que também era o seu, Dr. Everaldo Nazareth, o diretor do Aprazível Clube de então, trouxe para seus associados e para quem mais quisesse ver, o clube era aberto ao público, um punhado de artistas que nos alegraram e nos emocionaram durante duas noites memoráveis. Devíamos estar em 1966 ou 67, não sei precisar, quando as portas do clube se abriram para ouvirmos a voz de veludo do cantor de serestas,

Seresteiro Carlos José, anos 60

Cantora Carmem Silva - anos 60

Cantor Noite Ilustrada - morreu em 2003

Cômico Barnabé - morreu em 1968

Carlos José, com sucessos românticos como “Esmeralda”, “Malandrinha”, “Chão de Estrelas”, “A Deusa da minha rua”, depois ouvir as piadas do humorista caipira mais famoso da época, o mineiro de Ribeirão dos Pinhais, Barnabé e fechar a noite com o samba ritmado da Pérola Negra, a belíssima cantora negra Carmem Silva, também mineira, dona de uma voz maravilhosa e potente, cantando “Ave sem ninho”, “Adeus solidão”. Na noite seguinte, todos de volta ao palco, com a surpreendente aparição de um dos mitos do nosso samba, o simpático e querido Noite Ilustrada, mineiro que nasceu Mário Souza Marques e que tinha um dos repertórios mais ricos entre os intérpretes populares do Brasil. O público que lotou o clube nas duas noites, se deliciou com “Volta por cima”, “Eu sou o samba”, Barracão de Zinco”, “Meus tempos de Criança”, “Saudades da Amélia”, e outros sucessos de nossa música.

Foram duas noites inesquecíveis, e dois dias em que estes artistas caminharam pelas ruas e praças da cidade, recebendo e devolvendo carinho e simpatia aos passantes. Vivíamos uma cidade alegre, movimentada de dia e de noite, com crianças levadas por suas famílias, na Praça São João, com jovens namorando de mãos dadas, com muitos shows, bailes temáticos e de estilo, filmes de grande sucesso nos dois cinemas, no de cima e no de baixo, com uma fanfarra do colégio que levantava o povão, com uma Rádio Difusora de enorme audiência, por apresentar programas variados e atraentes, com um vigário alegre que promovia festas, procissões, eventos na Sede Pio XII, com uma quermesse que era comentada em toda a região e que esquentava as férias escolares, com circos e parques de diversão que movimentavam nossas noites, com uma fonte luminosa que encantava o povo, ruas noturnas que tinham brilho, muita vida, muito calor humano. É esta a Monte Aprazível que guardo com cuidado para não se apagar, dentro do meu coração.