Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

"Uma estrela brilhou em nossa noite"

Monte Aprazível tinha orgulho de seus prata da casa, mas também vibrava com espetáculos vindos de fora, como shows, peças teatrais, monólogos, audições de piano e outros eventos.  Era tempo da gestão de um dos melhores presidentes que teve o Aprazível Clube, o dentista Dr. Everaldo Nazareth, em cuja gestão pudemos assistir a várias apresentações de elevada qualidade, pois o Dr. Everaldo se esmerava neste item das atividades do clube. Hoje vou discorrer sobre um dos que ficaram na história. 

Foi em 1965, não consigo situar a data, o Dr. Everaldo me procurou porque soube que eu tinha bom trânsito com o presidente da Comissão Estadual de Teatro, o teatrólogo Nagib Elshmer, o que confirmei. Aí ele me revelou um sonho que acalentava havia tempo, trazer uma das maiores atrizes do teatro e do cinema brasileiros, Cacilda Becker, irmã da atriz Cleyde Iáconis, na época esposa do ator Walmor Chagas para um espetáculo no Aprazível Clube. Escrevi uma carta para o Nagib, sem muita esperança de que ele conseguisse convencer a grande estrela do teatro e do cinema a se apresentar numa cidade do Interior. E qual não foi minha surpresa ao receber um telegrama do amigo com os seguintes dizeres. “Caro Orestes, a Cacilda e o Walmor acabam de montar um espetáculo sui generis, um diálogo com jogos de cena e de expressões sobre “o Amor” e acharam uma ótima ideia apresentá-lo aí. Ligue-me (tel....) para tratarmos disto”.  Eu corri procurar o Dr. Everaldo, mostrei-lhe o telegrama, achei que ele ia ter um piripac, ele ficou branco como seu sorriso, me levou ao interior de sua casa e me entregou o telefone, “liga pra ele, professor! Liga agora antes que eles se arrependam!” Eu disse “eles quem?” “A Cacilda e o Walmor!” Eu falei com o Nagib, anotei os detalhes, as condições sugeridas e passei o telefone para o Dr. Everaldo, quem completou a conversa. Nunca esqueci nem vou esquecer do abraço que ele me deu, ele parecia uma criança quando ganha o presente sonhado. Festejou com Dona Luzia e as crianças, quanta alegria!  E eles vieram! E o Dr. Everaldo realizou um trabalho perfeito, em todos os detalhes. O resultado, uma noite de gala! O salão do clube ficou minúsculo para tanta gente e, apesar da enchente, um silêncio sepulcral emoldurou a aparição dos grandes atores!

Cacilda Becker

A voz até hoje inconfundível da Cacilda Becker (e quem a conheceu sabe bem do que estou falando), aquela voz grave e firme ecoou no salão e deve ter ecoado nos ouvidos do Dr. Everaldo por toda sua vida. Um casal bonito, elegante, Walmor e Cacilda encantaram a nossa gente com suas frases poéticas e singelas sobre o amor. Era uma obra pessoal do casal, uma joia rara, cheia de frases de efeito, de ironias, de brincadeiras, de paixão, de rusgas, eram os embalos do amor, que tivemos o privilégio de assistir. A plateia ficou encantada com o que viu e ouviu e os atores encantados com a plateia, que se comportou como as grandes plateias dos grandes centros, atenta, silenciosa, aplaudindo no momento certo, acima de tudo respeitosa. Cacilda Becker ficou marcada na memória da cidade e comoveu a nós todos ao morrer tão jovem, aos 48 anos. Foi uma das atrizes mais importantes da história da cultura brasileira, brilhou no TBC, como era chamado o Teatro Brasileiro de Comédia da Rua Major Diogo, do Bixiga, em São Paulo. Foi tão grandiosa que erigiu um teatro com seu nome. Sua última peça é um dos grandes mistérios do capricho do destino, até hoje os atores temem representá-la, porque várias das atrizes que atuaram nesta peça de Samuel Beckett, “Esperando Godot”, morreram em cena e a Cacilda não foi uma exceção, representava o papel do vagabundo Estragon, teve um derrame em cena, entrou em coma e daí a trinta e oito dias faleceu, em 13 de junho de 1969. Seu brilho era tão intenso que sua morte mereceu, do grande poeta Carlos Drummond de Andrade, estes versos que transcrevo:

“A morte emendou a gramática.

Morreram Cacilda Becker.

Cacilda Becker,1954.Magda Tagliaferro,"Impressões Seresteiras" (Villa-Lobos)

Não era uma só. Era tantas.

Professorinha pobre de Piraçununga,

Cleópatra e Antigona

Maria Stuart

Mary Tyrone

Marta de Albee

Margarida Gauthier e Alma Winemiller

Hannah Jelkes a solteira

A velha senhora Clara Zahanassian

Adorável Júlia

Outras muitas, modernas e futuras

irreveladas.

Era também um garoto descarinhado e astuto: Pinga-Fogo

E um mendigo esperando eternamente Godot.

Era principalmente a voz de martelo sensível

martelando e doendo e descascando

a casca podre da vida

para mostrar o miolo da sombra

a verdade de cada um nos mitos cênicos.

Era uma pessoa e era um teatro.

Morrem mil Cacildas em Cacilda".

Nota do cronista---Por favor:não corrijam estes versos, o poeta os escreveu assim mesmo inclusive o o nome de Pirassununga.