Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

"Graça, alegria, hombridade não faltavam aqui"

Ainda abordando o tema “tipos humanos” da antiga Monte Aprazível, vale a pena lembrar e destacar mais algumas das pessoas que davam vida especial à cidade, pela sua contribuição pessoal ou por sua atuação como agentes de agremiações, empresas, escolas, etc. Em toda comunidade surgem pessoas que se tornam referências dentro dos grupos em que convivem, principalmente se elas vivem em cidade de médias para pequenas, onde a repercussão dos atos pessoais é mais direta e rápida. Eu imagino que hoje em dia, Monte Aprazível apresenta diversos tipos humanos que se destacam, mas o meu propósito é resgatar figuras de uma época remota, mais precisamente dos anos 60, quando vivi e curti esta cidade com apego e entusiasmo.

Como tínhamos o Décio Tavares, observador arguto, espirituoso e rico de bom humor, tínhamos outras figuras que atraíam a atenção por algum motivo. Por exemplo, os contadores de histórias. Este é um tipo atraente, principalmente se ele exibe traquejo e arte na sua narrativa. Walter Ênumo era um deles. Quando o conheci ele atravessava a meia idade, entre 30 e 40 anos, tinha família, mulher e filhos, morava numa casa situada na Rua 26 de Maio, entre as casas onde moram hoje o Sr. Massud Cury e o Sr. Aprígio Macri, meus velhos conhecidos. Walter Ênumo era contabilista, mantinha um escritório da sua especialidade na Rua Osvaldo Cruz. Caso você visse uma rodinha de cidadãos diante ou dentro de um bar, de um dos clubes da cidade, podia apostar que estavam ouvindo histórias, “causos” ou piadas contadas pelo Walter. Seu repertório era vasto e marcado pelo humorismo de bom gosto. O Walter Ênumo não contava piadas “sujas”, eivadas de termos chulos, podia ter alguma algo picante, mas o nível não baixava. Ouviam-se de longe as explosões de gargalhadas e no meio do alegre grupo estava por certo o Walter Ênumo, animador das reuniões do Aprazível Clube, do Iate Clube e dos jantares do Rotary Clube. Teve um fim trágico, cujos detalhes prefiro omitir, em respeito à sua memória e aos seus familiares.

Outro contador de histórias bem popular era o Mineiro. Embora eu tenha participado de inúmeras rodinhas em cujo centro ele pontificava, com um repertório invejável de piadas, contadas com riqueza de detalhes e dramatização perfeita, nunca ouvi alguém chamá-lo pelo nome, mas nem por isto deixei de considerá-lo um gênio da narrativa. O Mineiro, amigo pessoal do Abílio Príoli, por isto era visto com frequência no seu bar, sabia as piadas das mais antigas até as mais novas. Alguns de seus ouvintes às vezes perguntavam “você conhece esta?” e contava o tema da mais nova piada que tinha ouvido e o Mineiro logo dizia “ah, a do fulano que...” e contava o resto da piada. Apesar do seu jeitão de caboclo, vestido com a camisa xadrez e o chapelão do homem do campo, suas piadas não se limitavam ao ambiente que aparentava frequentar, Mineiro sabia as piadas mais sofisticadas da época. Também ele era cuidadoso com seu linguajar, raramente saía com uma piada mais “forte”, dono de um repertório riquíssimo, estas não lhe faziam falta.

Na cidade daquela época, outras rodinhas eram comuns. Na passagem do trabalho para o almoço em casa, havia o hábito de uma paradinha no bar, onde acabava formando-se a rodinha do aperitivo, o que se repetia todas as tardes. Existiam também as rodinhas lá na Bótchia (jogo oriundo da Bassa Itália, que em italiano se escreve boccia) e que em Monte Aprazível tem uma verdadeira instituição, a Bótchia, que fica nos fundos de uma casa situada na Rua Osvaldo Aranha, entre a Rua 26 de Maio e a Rua Duque de Caxias. A Bótchia (escrevo como se pronuncia) acho que tem a idade de Cristo, de tão antiga e tomara que ainda esteja lá, proporcionando o lazer do homem comum da cidade.

Agora quero falar de uma rodinha de que participei inúmeras vezes e da qual morro de saudade. A rodinha do bate-papo se dava em frente à tapeçaria do Otávio e do Batista, na mesma rua da Bótchia, em frente à oficina Ford dos Maionchi. Quatro horas da tarde, com o calorão que faz em Monte, a gente conversava sentado nas soleiras das portas da tapeçaria e nas guias da sarjeta. O Otávio e o Batista também participavam ativamente, nem por isto paravam de trabalhar ou com suas agulhas ou com suas máquinas. Ali paravam o Nino Maionchi, muitas vezes o Noninho também Maionchi, o Fochi que vinha lá do bar da esquina, o Sr. Zeca de Souza, avô da Dirce Mara, minha esposa atual, que teve um empório vizinho ao lado da tapeçaria, o Siriaco, quando não tinha serviço na sua marcenaria, que ficava na esquina de baixo e uma pessoa muito querida de nosso grupo e de muita gente da cidade, o excelente cidadão Lavínio Luchesi, que morava com dona Luminda na casa da esquina, vizinhos que eram da família do Sr. Osvaldo Peresi.

Vista parcial da Represa Lavínio Luchesi, a Represa dos Sonhos

O Dr. Lavínio já tinha sido prefeito da cidade, foi deputado, era agrônomo de alto conhecimento, era um cidadão tranquilo, acabolclado apesar do sobrenome italiano, fumava cigarro de palha, lavrava a terra de sua magnífica fazenda, sentava-se no fio da  guia da sarjeta e conversava sobre tudo, mostrando sempre experiência da vida, sensatez e respeito às opiniões contrárias a dele. Dr. Lavínio era família, pai da Aurea, do Lavininho, do Vinícius, da Cristina e da Márcia; Dr. Lavínio tinha conhecimento administrativo para servir a grandes cidades, e nós, da sua roda da calçada, éramos os privilegiados que podíamos trocar com ele ideias sobre plantas, sobre animais, sobre problemas do município, sobre política estadual e nacional, era mestre na sua simplicidade cativante. Virou nome de rua, de represa e no Google não se encontra uma só palavra sobre o homem, sua vida, sua brilhante carreira, sua enorme contribuição à cidade, à região, ao país, lá só se fala na Represa dos Sonhos que ele criou.

Não posso deixar de narrar para meus leitores um episódio que coroou de vez minha veneração pelo Dr. Lávínio Luchesi. Estávamos em 1968, ano em que ia se realizar, em outubro, a primeira eleição direta desde o golpe militar de 1964; coincidentemente eu e meus colegas de prisão política íamos ser finalmente julgados, em novembro, pela justiça comum de São José do Rio Preto. Como eu escrevia crônicas para a Rádio Difusora, tornei-me popular na cidade, fui instado com insistência a colaborar com as campanhas políticas, mas, além da aversão que eu tenho por isto, fui aconselhado a fingir de morto durante todo o transcurso da campanha política, por meu advogado. Eu ia indo para casa, em frente ao antigo Banco do Brasil, na esquina da Praça São João, quando o Dr. Lavínio, candidato, meio contra a vontade, a prefeito, dirigindo seu Gordini verde, me avistou, estacionou e me chamou. Conversamos eu em pé na rua e ele dentro do carro, quando ele me disse, com estas palavras que gravei na memória: “Professor, eu estou sabendo do seu problema na justiça este ano; por esta razão o senhor está liberado de qualquer posicionamento nesta campanha, de qualquer manifestação em apoio à minha candidatura se for o caso, pense na sua segurança e na de sua família. Se eu merecer o seu voto silencioso, ficarei muito honrado!”. Eu concordei com a cabeça, fiquei em silêncio e emocionado, e no íntimo pensei: já ganhou meu voto!  Lavínio Luchesi, este era um Homem, como  todos devíamos ser. Voltarei a focalizá-lo, tenho muita coisa para contar dele e o meu leitor merece conhecer melhor este ilustre e admirável cidadão desta querida terra.