Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

"Como esquecer?"

Depois daquela chegada festiva, da acolhida aconchegante proporcionada pela vizinhança, da despedida emocionada da totalidade dos alunos, seguiram-se outras manifestações de solidariedade, de verdadeira camaradagem. Toda manhã recebíamos o latãozinho de leite oferecido pela bondosa Dona Ana, esposa do Sr. Constantino de Carvalho, a Dona Maria do Ataliba nos mandava ovos fresquinhos, colhidos no seu quintal, o Pedrão do Mercadão, quando ia embora e passava pela nossa casa, ia com os bolsos cheios de balas para as crianças; ganhávamos frutas, verduras e legumes da horta do Quaresemim, que ficava na rua de baixo e quando chegou o Natal daquele ano, recebemos a visita do Professor José Ceneviva, meu colega de Educação Física, com a missão de nos entregar um bolo de dinheiro, fruto de uma “vaquinha” feita por meus colegas professores, nosso presente de Boas Festas. Eu fiquei tão surpreso, emocionado e sem jeito que não sabia o que fazer, o que dizer e, vocês podem não acreditar, mas eu não sei o quanto somava, o que mais importava não era isto, era o gesto, era a mão estendida que deixara seus vestígios em minha alma e que não se apagam nunca.

 Um grande amigo, então presidente da Comissão Estadual de Teatro, Nagib Elchmer, fez chegar a mim um telegrama intimando-me a ir a São Paulo ter com ele na Secretaria Estadual do Interior, onde ele era chefe de gabinete, pois ele ia tentar reverter a minha demissão. Convidei o Casemiro e lá fomos nós. A boa vontade e o empenho do meu amigo de nada adiantaram, pois o governador Adhemar de Barros não mandava mais nada. Diante disto, meus professores da USP e da Aliança Francesa de São Paulo conseguiram uma autorização excepcional para que eu instalasse, dirigisse e fosse o professor de uma Aliança Francesa em Monte Aprazível, pois neste tipo de instituição o governo militar não podia interferir. Aí nasceu a Aliança Francesa da pequena cidade de onze mil habitantes, um desafio inusitado. Logo a notícia se espalhou e foi recebida com aplausos pela gente da cidade. Agora era a hora de organizá-la, de recrutar alunos, de instalá-la e torná-la uma realidade. Mãos à obra! Sozinho?  Não.

Vejam como esta ideia frutificou e se tornou um sucesso. De Rio Preto tinha se mudado para a cidade, o desenhista, pintor e publicitário, Hector Calderón Ugarte, então marido da minha ex-aluna e agora professora do nosso Instituto de Educação, Maria Célia Leal. Ofereceu-me seu atelier, que já funcionava num prédio perto da rua do comércio, onde eu teria os cartazes que iriam anunciar a nova Escola. Na esquina da Rua Brasil com a Rua Amadeu de Paula Bueno, tínhamos a farmácia da Dona Anita, mãe da Dona Tetê, sogra do professor Jesus Gagliardi, avó da Maria Sylvia, do Poesia e do Luís Tadeu e a Dona Anita me chamou e me disse: “Faça um cartaz anunciando a Aliança Francesa, uma seta indicando ‘Matrículas AQUI’.  Eu receberei as matrículas.” O Hector fez o cartaz e Dona Anita começou a receber as matrículas. Tudo corria bem, mas, onde ia funcionar a dita cuja? Eu não conhecia ainda bem a cidade, não tinha ideia de como isto ia se resolver. Mas, eu estava em Monte Aprazível, cidade que desde a adolescência alimentara meus sonhos e aí o inesperado aconteceu. Inesperado por que?  Eu saíra de Rio Preto, egresso de uma prisão política, com fama de perigoso subversivo, mudara-me para uma cidade onde o pároco tinha fama de conservador, de padre que não aceitava a ideia de tirar a batina e usar roupas civis, quando, sentado em minha varanda, matutando onde iria instalar, quanto e como iria ter que gastar com aluguel, mobiliário escolar, material, aí encosta uma caminhonete, desce o Padre Altamiro, chega ao meu portão e pergunta: “Aqui é a casa do Professor Orestes? É o senhor?”  Logo lá estava ele sentado junto a mim, todo simpático; fitou-me sério e me perguntou: “É verdade que o senhor vai instalar a Aliança Francesa aqui em Monte Aprazível?” Diante de minha confirmação, “E onde vai ser esta escola?”  Disse-lhe que estava pensando naquilo justo quando ele chegou e que não fazia a menor ideia. Padre Altamiro levantou-se dizendo: “Vem comigo, vou lhe mostrar uma coisa!”. Entrei em sua caminhonete e fomos até uma construção perto da Matriz, um prédio com jeito de casa vazia, a Sede Pio XII.  O padre abriu a porta, entramos e ele foi mostrando: “A secretaria, olha os móveis, a sala de aulas, olha as carteiras, a lousa, a sala de leitura, ou biblioteca, olha a mesa, as estantes!” Saímos para os fundos, subimos uma escada externa e lá estávamos num salão com estrado mesa e cadeiras  e no plano de baixo, inúmeras poltronas como nos velhos cinemas. Era o auditório. E eu pensava com meus botões: “Será que ele vai querer alugar a sala de aulas para a Aliança?”  Descemos, ele ainda me mostrou uma piscina vazia, o palco ao ar livre, pegou no meu braço e me disse, com estas palavras: “Aqui vai ser a Aliança Francesa de Monte Aprazível!”  E antes que eu abrisse a boca: “Não precisa mais procurar. Você arruma gente pra dar uma bela limpada, uma boa lavada nos banheiros e pronto! Aí está sua escola, professor!”  Mais uma vez eu fiquei embasbacado, olhei pra ele e perguntei “Mas assim? De graça? Como eu vou pagar tamanho favor, padre do céu?” - “Você não precisa pagar nada, mas tem uma coisa, eu quero ser aluno e, de graça!”  Padre Altamiro foi um dos meus melhores amigos até a sua rápida partida, tenho muita coisa para lhes contar sobre ele. Aquela tarde eu já pude conhecer sua grande generosidade.

Eu fui muito feliz nos vinte anos que vivi na minha Itápolis natal, fui muito feliz na pensão da Rua Maria Antonia de São Paulo, tempo de estudante, fui muito feliz na Faculdade onde lecionei em Rio Preto, mas aquele momento, juntado com os gestos anteriores que já mencionei, aquilo me deu uma das emoções mais gratificantes desta minha vida. Será que eu não tenho motivos para guardar no peito um lugar especial para a terra e a gente que  me fizeram um ser humano novamente digno? A cidade mudou, o povo mudou, a vida mudou, mas quando eu chego, quando piso seu chão, meu coração pulsa mais forte, porque eu não me esqueço.