Histórias que não foram escritas

Orestes Nigro

"Minha doce vida, rodeado de alunos"

Ainda no 2º semestre de 1964, viajando no meu Ford 1936, eu passava o dia no I.E. Capitão Porfírio Pimentel, lecionando nos períodos da manhã e da tarde. Lembro-me da fisionomia de todos os alunos e alunas, posso não me lembrar do nome de alguns, mas lembro-me até em que parte da sala de aula se sentavam, principalmente dos que se sentavam junto aos vitrôs. Alguns destes alunos tiveram passagens que ficaram gravadas na minha memória. O Massud Soubhia, o Massudinho, aluno do primeiro ano da tarde, tinha francês já na primeira aula e chegava sempre atrasado; sempre arrumadinho, bem penteado pela sua mãe, Professora Dona Maria, as desculpas que ele inventava eram as mais esfarrapadas e logo desmentidas pela Dona Laura Ciotti, nossa simpática inspetora de alunos. O Roberto, um loirinho meio gordinho, que se sentava na primeira fileira à esquerda, não me lembro de seu sobrenome, mas sei que seu pai se chamava Bartholo, pois é, este Roberto era tirador de sarro e quando a gente dizia algo engraçado, ele dava uma gargalhada que se ouvia até na Vila Araújo. Percebendo que ele fazia isto para “tirar uma”, como diziam, fiz-lhe uma ameaça: “Qualquer hora vou fazer você engolir esta régua!”, ele fez uma cara de incrédulo e ficou por isto mesmo. Acontece que, em Rio Preto, perto de minha casa, havia uma confeitaria que fazia doces por encomenda. Encomendei uma régua doce, de cor azul escura, igual a que eu tinha. Na primeira aula, fiz um gracejo, o Roberto soltou aquela gargalhada e eu enfiei a régua pela boca dele. O danado percebeu que era doce e comeu a dita cuja todinha. Aposto que muitos de seus colegas ainda se lembram disto. 

Na mesma classe do Roberto e do Massudinho, eu passei a ouvir, durante a aula, um cachorro uivando, toda vez que eu virava as costas para a classe para escrever na lousa; eu olhava depressa para trás para ver se pegava o “cão uivante” e nada! Daí a dois dias, na mesma classe, comecei a escrever na lousa, voltam os uivos. Na terceira virada peguei o imitador! Ele até erguia o corpo para caprichar nos uivos. E quem era o artista? O Milton Júlio, mais conhecido como Milton Girafa! Eu gostava muito do Milton, era um menino super simpático, gostava de contar tudo que acontecia na casa dele, mas tinha que dar-lhe o troco. Chamei-o à frente, Milton, vem aqui!” Ele veio vindo e eu comecei a tirar minha cinta! Ele olhou espantado, “O senhor vai me bater, fessô?” -  “Não, respondi, você acha que vou bater em você?” Ele foi chegando e quando ficou bem perto de mim, lacei o pescoço dele com a cinta, passei a fivela e falei: “Quem uiva é cachorro, e comigo cachorro anda na coleira!” E o Milton assistiu à minha aula por um bom tempo, sob as risadas dos colegas!  Você pensa que o Milton foi  queixar-se com alguém da escola, com os pais dele? Deu-se ali o famigerado bullying?  Que nada! O Milton foi o que mais se divertiu com a história e, até numa noite destas, encontramo-nos da Cachaçaria do Garoto, ele me deu um abraço e fez questão de contar a todos os presentes, este episódio.

Eu sinto uma saudade imensa daquele período em que vivi meus dias ligado aos meus novos alunos. Havia uma grande alegria no ambiente escolar, a indisciplina que acontecia naquele tempo, perto do que é hoje, era de uma inocência elogiável. Os professores do Porfírio Pimentel eram adorados pela maioria de seus alunos. Um dos que me encantaram por sua simplicidade, simpatia e coração bondoso foi Professor José Antônio Pereira, o conhecido Professor Zé Gordo, de Português, marido de Dona Maria Aparecida Neves Rodrigues, musicista admirável. Ali fui reencontrar, lecionando, meus ex-alunos de Letras de Rio Preto, a Ivone Spolon, o Zêqui Elias, a Maria Inês Vendramini, conheci o Professor Benedito, especialista em Esperanto, a sonhada língua universal; conheci professores excelentes, que formavam  um corpo docente dedicado e integrado, como poucas vezes pude ver.

A saída da última aula, à tardezinha, era um encontro descontraído, durante o qual os professores recebiam muitas provas de carinho. Os alunos que vinham das cidades vizinhas corriam para a praça da Matriz, onde funcionava a VAP (Viação Aprazível Paulista), com sua bilheteria do lado da loja do Sr. Abraão Cury, numa portinha em que ficava o Seo João da VAP, o simpático bilheteiro da empresa. Naquele tempo, Monte Aprazível não tinha rodoviária, os ônibus verdes e amarelos da VAP encostavam no meio fio, ali no Largo da Matriz.

Eu pegava meu Ford 36 azul, acompanhado do meu carona Milton Verderi, professor de Matemática, que era quase meu vizinho em Rio Preto, e já tínhamos a rodovia asfaltada que deixou Neves Paulista na saudade. Foram meses de vida nova, de reencontro com a alegria de viver, nem parecia que eu tinha vivido dias de chumbo. E por falar em chumbo, eu sempre pisei firme no acelerador quando no volante, o que continua acontecendo até hoje. Certa manhã, quando eu já ia quase chegando na entrada de Neves Paulista vi, pelo retrovisor, uma caminhonete C10 da Chevrolet que me seguia. A C10 me acompanhou até Monte Aprazível e, para minha surpresa, foi até o Instituto de Educação, parou atrás de mim, desceu um moço alto, cabelo liso e aloirado, que me perguntou: “Este seu Ford tem motor de avião, é?” Era o simpático e saudoso Lino Maset, que depois tornou-se um grande amigo meu. Muitos amigos, só amigos, é o meu legado da Represa dos Sonhos.