Crônicas de Cássia Gentile

O Casarão

 

Fachada frontal do Casarão

Deliciosas lembranças me trazem o casarão. Sóbrio e senhorio, às margens do jardim central da cidade, parecia desafiar o tempo e as construções modernas. Mantinha-se majestoso e indiferente aos que passavam em sua velha calçada a caminho dos bancos, da funerária, da padaria vizinha ou dirigiam-se ao jardim para descansar à sombra dos grandes arvoredos ou simplesmente para ver a “vida passar” no vai e vem dos transeuntes que cruzavam o jardim em busca de seus afazeres.

Falo de saudades! Saudades gostosa com uma mistura fina de dor que logo identifico ser pela perda da memória de um povo, um povo que viaja longas distâncias para ver  castelos, masmorras, fortalezas e casarios de séculos e séculos e não preserva a própria história.

 Assim ocorreu com o Cine Lyan, uma junção amorosa de Lydia e Antonio que do outro lado do jardim ”olhava” diretamente para o casarão e hoje abriga uma instituição financeira que destruiu seu lindo auditório de 1040 lugares, observem, mil e quarenta lugares com destaque para o mezanino onde muitos namoros à revelia dos pais, acontecia. 

Falo da estátua de um grande estadista da terra que fez história lá pelas bandas da capital e que do jardim central foi “transferido” para um canto do mesmo referido jardim, perdendo totalmente o seu significado, dando lugar a um tanque de água esquisito, mal feito, torto, feio mesmo.

 Falo da saudades da cadeia pública que se tornou um museu, um prédio grande de contornos belíssimos da arquitetura do passado que em seu ventre abriga parte da história da cidade e hoje, acreditem caros viajantes, descascado, mal ajambrado, totalmente abandonado, carente de cuidados, barrando assim a volta do cidadão que por suas salas viajava no tempo se deliciando com os inúmeros objetos e fotos ali expostas.

 Enquanto viajamos para conhecer a memória de outros povos, a história da cidade em mofo trancafiada, morre.  Adquirimos “cultura” pelas andanças em outros continentes e inertes assistimos à derrocada da nossa própria história.

 Mas.............ah! Que bom que existe o mas!!! Por alguns momentos deixo prá lá tais pensamentos e fecho os olhos para aos poucos ser transportada para o meu tempo de criança onde por essas paragens sempre brinquei, naquele pedaço da cidade, naquele casarão.

 Neste momento não seguro mais a memória e deixo que ela me traga lembranças há muito deixadas de lado. Brincava-se muito, muito mesmo no meu tempo de infância. No jardim, que por vezes se tornava nosso quintal a brincadeira era correr em zigue-zague entre os inúmeros pares de namorados que circulavam o jardim num passeio infinito onde não havia começo nem fim e quando se cansavam, os namorados sentavam-se em um banco escolhido a dedo. Havia casais que tinham seus bancos preferidos, acreditem, e ali ficavam trocando carícias e beijos fortuitos e apaixonados.

 Fazia parte das brincadeiras também a amarelinha, o bambolê, que seria mais tarde proibido, não me lembro ao certo do porquê, as brincadeiras de roda, o passa-anel, o pega-pega e o “currupiu piu piu na cueca do seu tio”. Hoje penso: “o que significava aquela canção????”........... Seria mais uma brincadeira interpretada erroneamente e que foi passando de geração em geração sem nunca ser questionada? Como saber?

 Enquanto isso os adultos colocavam cadeiras em frente a porta do casarão e ficavam horas a fio em uma prosa, a cumprimentar aqueles que a passos lentos, se dirigiam aos seus lares após o término da missa.

 Logo acima do casarão encontrava-se a Telefônica, obra de cidade em progresso e onde esperava-se horas para conseguir uma ligação para a capital.

 Na esquina ficava o velho posto de saúde onde fui tratada de um tal “bicho geográfico” com um congelante remédio chamado Kelene. Não esquecendo que entre a telefônica e o posto de saúde ficava a Delegacia de Polícia.

 Ali também vi passar muitos enterros, pois caminho era, entre a igreja e o cemitério. Naquele tempo era costume empurrar-se o caixão em um carrinho com os familiares e amigos em prece acompanhando o féretro. Rapidamente os comerciantes baixavam as portas de seus estabelecimentos em sinal de respeito e as donas de casa fechavam as janelas e guardava-se silêncio de cabeça baixa até o cortejo passar. Nós também, as crianças, parávamos as brincadeiras e abaixávamos a cabeça como a compreender a finitude das coisas, mas em nossos corações a alegria e a despreocupação próprias da idade, transbordava e mal o cortejo passava, saíamos em disparada de volta às brincadeiras interrompidas, não havia tempo para a tristeza, pois a vida parecia prometer delícias e fantasias para sempre!

 Lembro-me da corrida até a “venda” prá comprar doces. Doces esses que nem tanto nos interessava, mas, sim os aneizinhos coloridos que vinham pendurados como brindes.... Era doce de leite, doce de abóbora, de batata doce, tudo em forma de coração. Tinha cocada, da branca e da preta, bananada e goiabada.

 Quando falo de saudades não é que queira que o tempo volte, não, eu sinto saudades da sensação de ser criança, criança há muito perdida nos anos já transcorridos. Era uma sensação única onde o mundo parecia se adequar aos nossos desejos e não ao contrário, onde todos os nossos sonhos iriam se realizar e seríamos felizes para sempre como conta os contos.......

 Nos dias de semana, tinha-se muita tarefa a fazer, mas rapidamente a fazíamos e corríamos, então para o quintal do casarão. Ah! O quintal! Hoje não existem mais os quintais. A terra que tudo dá foi sepultada em cimento e lajota, não há um único pé de jabuticaba, uma mangueira, um cajueiro, ou mesmo uma parreira, costume trazido da Itália pelos nossos ancestrais. Horta, nem pensar. Que sujeira! E as folhas que caem! E os bichos que dá!

O Casarão visto do centro da Praça Pedro Alves de Oliveira

 Pois, o casarão tinha quintal e que quintal!!!! Parecia um mundo encantado, com parreiras, jabuticabeiras, pé de tamarindo, bananeiras, cerca viva, pés de bucha, de laranja e outras tantas plantas que nem me lembro. Ao entardecer tínhamos que ser banhados por tia Lurdita com bucha grossa para sair a sujeira de nossos corpos. E doía a escovação, podem acreditar, mas valia a pena, pois o dia tinha sido “grandemente” aproveitado. Tinha também os tanques de lavar roupa sob um telhadinho e uma casinha mais afastada, que creio eu era para as empregadas, não sei, nunca perguntei, mesmo porque dona Maria dormia dentro do casarão. Empregada antiga que ficou ali até seus últimos dias.

 Naquele quintal passava horas trepada nos pés de jabuticaba que fazia as vezes de trapézio e de cabeça para baixo ficava imaginando ser uma trapezista do circo Aires. Guerra de barro com os primos também valia, esconde-esconde, queimada, pular corda e explorar o porão, pois o casarão tinha porão, sim senhor, frio, escuro, tenebroso de nos causar medo, incentivando nossas mentes infantis às mais estapafúrdias fantasias.

O Casarão visto do centro da Praça Pedro Alves de Oliveira

 Aos poucos vou abrindo os olhos, pois a vida presente me obriga a voltar, uma moto que passa, o toque de um celular, a voz do meu companheiro incentivando que continuemos o passeio e meio a contragosto e ciente de que o futuro precisa ser escrito volto a caminhar lentamente lançando um último olhar de saudades ao casarão como a dizer adeus, mas profundamente agradecida por sua excelência em proporcionar   inesquecíveis brincadeiras na minha infância. Adeus, já me despeço!

Crônica sobre o casarão de meus tios Antonio e Lurdita, na cidade de Itápolis - SP

 “OH! QUE SAUDADES QUE TENHO DA AURORA DA MINHA VIDA, DA MINHA INFÂNCIA QUERIDA QUE OS ANOS NÃO TRAZEM MAIS”

 CASIMIRO DE ABREU